A agonia de viver em espera permanente, com a ausência. A angústia diante da falta de notícias e do desencontro de informações. A frustração a cada suspeita não confirmada. Esta é a triste realidade enfrentada por aqueles que buscam pessoas desaparecidas. Em Santa Catarina, o drama afeta milhares de famílias todos os anos e, apesar dos recentes avanços das técnicas de investigação, continua representando um desafio para as autoridades de segurança. E dor para 1.412 famílias.

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De acordo com dados da Polícia Civil, somente entre os meses de janeiro e julho de 2019, 1.376 ocorrências de desaparecimentos foram registradas no Estado, o que significa uma média de 7,2 pessoas desaparecidas por dia. Neste ano, ainda conforme a Polícia Civil, os novos casos incluíram 22 crianças, 469 adolescentes e 885 adultos. A maior parte ocorreu na região da Grande Florianópolis, onde houve 692 registros, mais da metade do total ocorrido em SC no período.

Responsável pela única Delegacia Especializada em Pessoas Desaparecidas (DPPD) de todo o Estado, que fica em Florianópolis, o delegado Wanderley Redondo defende que é preciso ter cautela ao olhar esses números. Ele informa que uma parcela significativa dos casos de 2019 já foi solucionada: 67,58% das pessoas que sumiram entre janeiro e julho foram localizadas. Todas as 22 crianças, por exemplo, foram encontradas.

O delegado comenta que é comum que os registros sejam feitos a partir de desencontros, conflitos familiares e fugas, o que explica a rapidez com que parte dos desaparecimentos é esclarecida. No entanto, o delegado reconhece que um número considerável permanece sem respostas por semanas, meses, anos ou até mesmo décadas.

Até 31 de julho, o site da Polícia Civil que reúne as informações sobre o assunto contabilizava 1.412 desaparecidos em Santa Catarina, em registros desde 1975: 1.152 adultos, 242 adolescentes e 18 crianças. Segundo o delegado, é possível que parte dessas pessoas esteja em outros Estados, alguns como moradores de rua, afetados pelo vício em drogas, outros ainda vivendo sem dar notícias aos familiares, e alguns possivelmente estão mortos.

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Após 24 anos, caso Elicéia ainda é mistério

Era sábado, 18 de março de 1995. No começo da tarde, Elicéia Silveira, 9 anos, cruzou a porta da casa onde morava com a mãe e a irmã mais nova, na Vila Santa Rosa, no bairro Agronômica, em Florianópolis, para comprar um remédio na farmácia mais próxima. A menina vestia uma camiseta marrom clara com desenho na frente, uma bermuda amarela com estampas e um chinelo azul com listras brancas. O trajeto de ida e volta até o estabelecimento, localizado na Beira-Mar Norte, levaria cerca de cinco minutos, mas Elicéia nunca mais voltou.

Vinte e quatro anos depois, o caso, que já passou pela 6ª Delegacia de Polícia da Capital, pela Diretoria Estadual de Investigações Criminais (Deic) e que atualmente está com a Delegacia Especializada em Pessoas Desaparecidas (DPPD), segue sem conclusão, cercado de informações e suspeitas que nunca se confirmaram.

— As delegacias fizeram tudo o que foi possível, tanto nos anos seguintes ao desaparecimento quanto quando voltamos a investigá-lo, entre 2013 e 2014 — afirma Wanderley Redondo.

Diante de uma mesa abarrotada de papéis e inquéritos, onde se destaca a presença de uma lupa, o delegado relembra algumas das tentativas frustradas para encontrar a menina de Florianópolis. Entre elas o aparecimento de uma jovem em Minas Gerais que afirmava ser a garota e que chegou a se encontrar com a mãe dela em 1999, e a investigação de uma mulher suspeita de ter levado a menina para São Paulo.

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Entre as ações mais recentes na tentativa de encontrá-la, ele destaca a realização da progressão de idade da menina, para indicar como ela estaria hoje, e o recolhimento do material genético da família. No entanto, reconhece que nenhuma das ações ao longo dos anos levou a uma explicação plausível sobre o que aconteceu com ela.

— Já apuramos muitas informações, mas nenhuma delas se concretizou. O caso segue aberto até hoje — resume.

Elicéia
A menina Elicéia na época do desaparecimento, em foto que integra inquérito do caso (Foto: Diorgenes Pandini / Diário Catarinense)

“Roubaram um pedaço do meu coração”

Apesar do cansaço e das inúmeras decepções ao longo de mais de duas décadas de espera, a costureira Maria Inês Silveira, mãe de Elicéia Silveira, diz que ainda tem esperanças de encontrar a filha, que hoje estaria com 34 anos de idade.

— Para Deus, nada é impossível — comenta.

Nos anos que se seguiram ao desaparecimento, Maria Inês travou uma luta incansável à procura da menina: acompanhou cada detalhe das investigações junto à polícia, espalhou fotos com o retrato dela e participou de programas de televisão. Hoje, aos 56 anos, ela prefere evitar falar sobre o assunto. Com a voz embargada, a mulher conta, por telefone, que sofre de depressão e que precisa de remédios para dormir.

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— Relembrar é difícil para mim. Eu fico muito ansiosa, começo a chorar. Quem fez isso roubou um pedaço do meu coração. Eu jamais vou ser a mesma — lamenta.

No depoimento prestado à polícia no dia 30 de março de 1995, que integra o inquérito do caso, Maria Inês descreveu Elicéia como uma menina calma, tímida, que sequer brincava fora com as amigas, e que nunca tinha fugido de casa. Também contou que, naquela tarde, esperou pelo retorno da filha por 30 minutos, indo atrás dela depois disso.

Na farmácia, foi informada que Elicéia esteve no local e que saiu pela porta com uma sacola, levando o remédio que a mãe pediu para que comprasse.

Falta de estrutura dificulta buscas

Criada em 2013, a Delegacia Especializada em Pessoas Desaparecidas de Florianópolis ocupa parte de um andar num prédio na rua Felipe Schmidt, no Centro da Capital. No local, além do delegado Wanderley Redondo, trabalham mais cinco agentes e uma funcionária contratada.

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Cabe à essa equipe a tarefa de coordenar as buscas dos desaparecidos registrados em Santa Catarina. De acordo com Wanderley, a falta de pessoal faz com que apenas os casos registrados na Grande Florianópolis sejam investigados pela especializada. Os demais ficam a cargo das delegacias de cada cidade.

— É um problema que infelizmente a gente tem que enfrentar. Eu sei que não adianta pedir funcionários porque outras repartições estão na mesma situação. Por conta da pouca estrutura, damos prioridade a casos envolvendo crianças, idosos e portadores de necessidades especiais. Os outros vão ficando. Não temos outra alternativa — comenta o delegado.

Dificuldades e avanços

Para Aldaleia Conceição, presidente do Grupo de Apoio aos Familiares de Desaparecidos em Santa Catarina (Gafad), que já atendeu mais de 400 famílias desde 2010, quando foi criado, o trabalho dos agentes é louvável, mas o Poder Público poderia fazer mais.

— O que percebemos é que o trabalho da Polícia Civil e da Militar acaba deixando muito a desejar. Mas é por falta de estrutura, é uma falha do poder público. A gente vê que os agentes se esforçam, que não falta empenho, mas faltam ferramentas para que eles possam dar agilidade e resolver os casos com mais rapidez — observa.

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Gerson Rumayor, presidente e fundador da Ong Portal da Esperança, que atua há 20 anos com desaparecidos em Santa Catarina, acredita que o principal entrave para os trabalhos de busca está relacionado ao acesso a informações. Apesar das dificuldades, ele vê com otimismo a estrutura em funcionamento no Estado.

— Santa Catarina pode ser considerada um modelo nacional sobre o tema desaparecidos. Ao longos dos últimos anos, tivemos uma série de conquistas, com a criação da delegacia especializada, além do serviço de progressão de idade e do banco genético, com o DNA das famílias de desaparecidos. Quando começamos o trabalho na ONG, não havia nada.

Ações integradas melhoram a efetividade, diz secretário

De acordo com o secretário de Segurança Pública de Santa Catarina, coronel Carlos Alberto de Araújo Gomes, o governo tem trabalhado a fim de aumentar a disponibilidade de pessoal para atividades de investigação e de inteligência com ações que apostam em tecnologia para otimizar os serviços.

— A recente integração da forma de registro, permitindo que ele seja feito na delegacia, na internet ou através da Polícia Militar, dá agilidade na comunicação do desaparecimento. A integração dos bancos de dados, ocorrida no início deste ano, permite que todas as corporações trabalhem com a mesma base de informações, fortalecendo a inteligência da atividade e melhorando os resultados obtidos — ressalta o secretário.

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Carlos Alberto de Araújo Gomes também cita que, embora a Delegacia Especializada em Pessoas Desaparecidas esteja em Florianópolis, o trabalho conta com o reforço das delegacias de cada cidade, da Polícia Militar, com projeto SOS Desaparecidos, e do Instituto Geral de Perícias (IGP), responsável, entre outras coisas, pelo trabalho de progressão de imagem que indica como a pessoa desaparecida poderia estar hoje.

— Juntos, articulados e integrados, formam um contingente razoável para a localização de pessoas desaparecidas — diz.

Ainda segundo o secretário, o recente chamamento de 34 delegados concursados aumentará em breve a capacidade de investigação da Polícia Civil.

Esperança sem fim

A professora aposentada Lenore Xavier de Souza, de 68 anos, passou meses fazendo e refazendo o Caminho do Rei, estrada que liga Canasvieiras a Jurerê, no Norte de Florianópolis. Segundo pessoas da região, a filha dela, Joana Xavier de Souza, passou pelo local pouco depois de fugir de uma casa de repouso onde estava, em 2011. Desde então, Lenore não tem mais notícias da filha.

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Lenore, mãe de Joana
Lenore Xavier: empenho em busca de pistas de paradeiro da filha, Joana (Foto: Tiago Ghizoni / Diário Catarinense)

— Tem sido muito trágico, muito dolorido. São oito anos de espera, sempre com esperança, esperança, esperança – desabafa a mãe, que lembra da filha como uma pessoa alegre, que gostava de cantar e de escrever poesia, antes de “começar a ficar triste”.

Lenore conta que Joana estava com 33 anos quando desapareceu, e que havia sido levada para uma casa de repouso localizada em Canasvieiras porque passava por uma fase de depressão.

— Lembro que eu telefonei para dizer que ia visitar a minha filha e a atendente me disse: “olha, a Joana fugiu hoje de manhã” — recorda.

Oito anos depois, a mãe diz que continua empenhada em encontrá-la. Ela atua junto a grupos de apoio e divulga o retrato da filha nas redes sociais e onde mais for possível.

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— O mais difícil é não ter a resposta, não fechar o ciclo. Eu quero saber o que aconteceu com a minha filha. Depois desse tempo todo, a gente vai mudando, o jeito como a gente encara muda, até porque temos que continuar lutando pela vida, mas a saudade vai aumentando — diz.

Já no fim da entrevista, Lenore faz um apelo:

— Apesar de haver muito empenho da polícia, eu gostaria de reforçar, pedir ajuda, para que eles continuem se empenhando em procurá-la. Eles sabem o que eu estou passando.

Reencontro após 77 dias

Foi só quando viu o próprio rosto em um cartaz colado na parede do casa de apoio Bom Samaritano, em São José, na Grande Florianópolis, que o uruguaio Marcos Roberto Salvetto, 40 anos, conseguiu recobrar a memória e pôr fim a um pesadelo que já durava mais de dois meses.

Setenta e sete dias antes, no dia 3 de março de 2013, o morador de São José teve um lapso ao sair do trabalho e acabou desaparecendo sem deixar notícias.

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— Não consigo lembrar de nada, apenas que tomei um refrigerante e ouvi uma voz. Quando me dei conta, já estava no Rio Grande do Sul — recorda Marcos.

Sentada ao lado do marido, Maria Irma Fadilha Salvetto, 56 anos, conta que ainda sente o coração apertar quando se lembra do que viveu naqueles dias.

— O Marcos trabalhava numa fábrica de pães, e naquela noite ele me ligou para avisar que ia fazer mais uma fornada e voltaria logo. Mas ele não veio para casa, simplesmente desapareceu. Foram dias terríveis. Fiquei sem lágrimas de tanto chorar — diz a mulher.

Após fazer o boletim de ocorrência de desaparecimento, ela mobilizou vizinhos e amigos para procurar Marcos e espalhar cartazes com a foto dele. Já estava quase desistindo quando colou um dos últimos, justamente o do Bom Samaritano.

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— Depois de dias perdido, eu tive a lembrança dessa casa de apoio, porque anos antes eu fiquei um bom tempo internado lá. Ao chegar, vi o cartaz com a minha foto e me lembrei que tinha uma casa — conta Marcos.

Depois do reencontro, veio o diagnóstico de esquizofrenia. Maria diz que eles não sabiam que o marido sofria da doença e que provavelmente essa foi a causa do esquecimento que o fez desaparecer. Hoje, ele toma remédios para controlar as crises e, sempre que sai de casa, leva consigo um crachá com o próprio nome e endereço.

Marcos
Marcos mostra o crachá que o acompanha desde que foi diagnosticado com esquizofrenia (Foto: Leo Munhoz / Diário Catarinense)

Polícia precisa ser informada sobre os reaparecimentos, enfatiza delegado

Se hoje Santa Catarina registra 1.412 pessoas desaparecidas, em 2013, quando a DPPD começou a atuar, o número de registros era de 18 mil. Conforme o delegado Wanderley Redondo, com a checagem de informações, foi descoberto que grande parte das pessoas já tinham sido localizadas. Atualmente, ele estima que aproximadamente 10% dos desaparecidos já tenha sido encontrada.

— Nós temos um problema de comunicação entre as famílias e a delegacia, porque as pessoas geralmente registram o desaparecimento, mas não informam quando a pessoa é localizada.

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Na tentativa de manter o sistema atualizado, parte importante do tempo dos agentes da DPPD consiste em checar com familiares se as pessoas cadastradas realmente continuam sendo procuradas. Para tentar mudar essa situação, o delegado levou uma proposta de melhora no sistema ao governo do Estado. A ideia é fazer com que os familiares que registraram ocorrência de desaparecimento confirmem que a pessoa continua sendo procurada num prazo de até 15 dias.

— Se a família voltar a fazer contato com a delegacia e informar que a pessoa permanece desaparecida, a investigação continua e o nome dela seguirá no sistema. Se não confirmar, o registro será excluído automaticamente — explica o delegado.

Wanderley Redondo
Wanderley Redondo durante entrevista na DPPD, em Florianópolis (Foto: Diorgenes Pandini / Diário Catarinense)

Site ainda é provisório

As informações sobre desaparecidos registrados pela Polícia Civil de SC estão na página desaparecidos.pc.sc.gov.br. Apesar de ser um dos poucos estados do país que conta com o serviço, o site ainda precisa de adequações.

O delegado Wanderley Redondo conta que ele foi criado há seis anos, de modo provisório, com a promessa de que seria aprimorado. Mas, até hoje, não passou por atualizações. A limitação técnica traz prejuízos e impede, por exemplo, que a delegacia especializada inclua fotos novas dos desaparecidos.

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— As fotos que estão no site são as geradas no registro da ocorrência. Depois, não conseguimos incluir novas imagens.

Por conta disso, apesar de haver mais de 1.400 pessoas registradas, cerca de 150 estão cadastradas com foto. A expectativa do delegado é de que o novo site seja criado nos próximos meses.

Lei que prevê cadastro nacional não saiu do papel

Em março deste ano, o presidente da República, Jair Bolsonaro, sancionou a Lei 13.812, que instituiu a política nacional de busca de pessoas desaparecidas, que estipula, entre outras ações, a criação do cadastro nacional. Hoje, o Brasil ainda não conta com um banco de dados que reúna as informações dos desaparecidos de todos os estados do país.

A lei cita ainda o desenvolvimento de programas de inteligência no âmbito das investigações das circunstâncias do desaparecimento até a localização da pessoa desaparecida.

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No entanto, depois de quatro meses da aprovação, ainda não houve ações concretas para tirar do papel as medidas previstas na lei. De acordo com o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, o governo ainda está trabalhando no decreto que irá regulamentar a lei que instituiu a política nacional e apenas depois da regulamentação é que as ações poderão ser colocadas em prática.

Para o delegado Wanderley Redondo, a unificação das informações em um banco nacional é uma medida fundamental para facilitar o trabalho de busca por pessoas, mas ainda é necessário debater melhor.

– Participei de uma reunião em Brasília. Nossa preocupação é reunir um grupo de delegacias de todo o país para que haja um debate, para saber quem vai supervisionar esse cadastro, se vai ser a Polícia Federal, quais serão as responsabilidades de cada órgão.

Quando e onde informar

Uma pessoa pode ser considerada desaparecida a partir do momento em que familiares ou pessoas do convívio dela não conseguem mais localizá-la ou contatá-la – sem que haja explicação para isso. O registro pode ser feito na delegacia mais próxima, ou pelo telefone 190, da Polícia Militar. Informações sobre desaparecidos também podem ser repassadas para o 181.

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A partir do momento em que é constatado, é importante que o registro de desaparecimento seja feito o quanto antes (não há necessidade de esperar 24 ou 48 horas). As primeiras horas são consideradas fundamentais para a localização.

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