Logo que Viviane Borges se deparou com os quadros do artista português Pinho, em fevereiro de 2019, achou que as imagens mostravam prisões – mas, ao olhar mais de perto, percebeu que os retratados eram crianças; crianças em ambientes que se pareciam com prisões. Conhecendo a história e como funcionavam os reformatórios portugueses nos anos 1930 e 1940, a historiadora logo entendeu do que se tratava. E percebeu que os quadros eram uma tentativa de denúncia.

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Viviane, que é mestre e doutora em História pela UFRGS e atua como professora adjunta da Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina), estava em Portugal à época, trabalhando em um pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Sua pesquisa foi realizada no Arquivo Histórico da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais da Penitenciária de Lisboa. Foi lá que Viviane viu pela primeira vez os quadros de Pinho; pinturas a óleo e gravuras feitas com carvão. E, além do tema abordado nos desenhos, um detalhe chamou atenção da pesquisadora:

– Em vários quadros, um dos meninos tinha lápis de cor no bolso: foi como o Pinho se retratou – ela conta. – Nos quadros, os meninos são todos iguais, têm rostos iguais; mas um deles destoa por ser o único com lápis de cor no bolso. Isso é sinal de que ele já pintava enquanto estava ali. Tem até uma pintura que mostra um menino sentado com o que parece ser um caderno de desenho. Ele se difere dos outros pelos lápis de cor.

Os vinte quadros eram assinados como “Pinho”, e as obras levavam a data em que haviam sido pintadas – fora isso, não havia mais nenhuma informação disponível sobre o autor dos desenhos. A primeira coisa que Viviane fez, é claro, foi pesquisar por aquele nome no Google; sem sucesso. Tudo indicava que Pinho não era um artista conhecido nacionalmente. A partir daí, a historiadora começou um verdadeiro trabalho de detetive para encontrar aquele homem.

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Os vinte quadros eram assinados como
Os vinte quadros eram assinados como “Pinho”, e as obras levavam a data em que haviam sido pintadas (Foto: Arquivo Histórico da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (Lisboa))

– Na instituição não se sabia muita coisa sobre ele, havia muitas informações desencontradas – a pesquisadora explica. – Eu passei o ano de 2019 tratando de trazer à tona a história desse pintor. Foi um ano de muita pesquisa, em que eu precisei estabelecer uma rede de contatos bem grande para descobrir quem foi esse artista.

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Conversas com funcionários do arquivo histórico acabaram revelando uma pista. Em 2014, ano em que aquele local específico recebeu o acervo de quadros, os colaboradores receberam um email inusitado: uma mulher afirmava que seu pai havia sido contemporâneo de Pinho nos reformatórios, e gostaria de ver os quadros. Por meio do contato dessa mulher, Viviane chegou a António Fernando, o tal contemporâneo de Pinho, que cedeu à historiadora um panfleto de uma mostra realizada na cidade do Porto nos anos 1990 – a única vez em que os quadros de Pinho foram exibidos ao público, fora do circuito ligado a prisões.

O panfleto estava inclusive autografado pelo artista; e continha outras informações valiosas: comentários e críticas de pessoas influentes da época a respeito da exposição.

– Vários já tinham morrido, mas eu fui atrás e encontrei o José Viale Moutinho, escritor que atuava como jornalista na época, e que me entregou outro folder, que mostrava outras obras do Pinho – Viviane continua. – São obras bem diferentes dessas primeiras que eu vi, que ele chamou de O Destino do Rapaz da Rua: essas outras mostram natureza morta, retratos… É um outro Pinho, que trabalha com temas variados.

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Em ambos os panfletos havia o endereço da casa da família de Pinho. Viviane escreveu para a viúva do pintor, Henriqueta, que ligou de volta – e aí finalmente o contato com a família foi estabelecido, e a pesquisa deslanchou.

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Pinho era José Joaquim de Almeida, um português nascido em Vila Nova de Gaia em 1927. Ele foi internado pela primeira vez em um reformatório em 1933, aos seis anos de idade, e passou por várias instituições (o Colégio dos Carvalhos e a Tutoria de Menores, no Porto; o Reformatório de Santa Clara, em Vila do Conde) até os 14 anos, quando conseguiu sair. O então menino não havia sido abandonado: ele foi internado porque sua mãe, uma jovem solteira, enfrentava dificuldades financeiras para criá-lo. Pinho nunca conheceu o pai, que, segundo a mãe, morava nos Estados Unidos; mas escolheu seu sobrenome como nome artístico.

Depois de sair dos reformatórios, Pinho conseguiu uma bolsa para estudar arte em uma escola técnica e se tornou um profissional bem-sucedido. Com a esposa, teve dois filhos. Pintou os quadros da série O Destino do Rapaz da Rua ao longo dos anos 1980 e 1990 – e, segundo amigos e familiares, era um homem feliz, que comentava sem problemas os tempos conturbados da infância. Pinho morreu em 1993, mas, até hoje, Henriquetta conserva o ateliê do marido, na casa onde os dois viveram desde os anos 1960, exatamente como ele deixou – inclusive com uma última tela, inacabada, no cavalete.

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Arquivos Marginais

O trabalho da historiadora Viviane Borges no pós-doutorado, que acabou possibilitando a descoberta das obras de Pinho e a pesquisa sobre ele, começou, na verdade, em função de um projeto mais antigo: é o Arquivos Marginais, que já existe há dez anos; e pesquisa instituições de isolamento social em Santa Catarina. O projeto é uma plataforma de ações de extensão voltadas para instituições de internamento, pensando na salvaguarda e difusão cultural de acervos; e buscando trazer à tona histórias de vida que incitem reflexões a respeito das práticas institucionais.

Pinho pintou os quadros da série
Pinho pintou os quadros da série “O Destino do Rapaz da Rua” ao longo dos anos 1980 e 1990 (Foto: Arquivo Histórico da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (Lisboa))

O Arquivos Marginais trabalha, por exemplo, com a salvaguarda do acervo ligado à Penitenciária de Florianópolis, contendo cerca de 4,2 mil documentos; e criou, no Instituto de Psiquiatria de Santa Catarina (antigo Hospital Colônia Santana), o Centro de Documentação e Pesquisa – que, agora em novembro, promove inclusive a exposição Alteridades, sobre os 80 anos do hospital e a primeira década do projeto. É uma mostra que trata dos internos que passaram pela instituição ao longo dos anos, e conta também a história do local, por meio de falas de antigos funcionários.

– Com esse projeto nós passamos a estabelecer contato com outras instituições, de outros estados; sempre procurando relacionar a história de Santa Catarina com a história do Brasil, fazendo uma história transnacional, pensando América Latina como um todo – detalha Viviane. – São raros os acervos desse gênero na América Latina; então tentamos estabelecer esse diálogo, situar Santa Catarina em uma história maior. A partir disso foram feitas conexões com outros países; entre eles um estudo relacionado a Portugal, com ajuda da Fapesc (Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação de Santa Catarina). Foi daí que surgiu também a oportunidade de estudar o Pinho.

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Ela explica o objetivo do Arquivos Marginais:

– A ideia é possibilitar a reflexão e promover a humanização desses espaços e desses sujeitos. Que a sociedade em geral possa refletir a respeito desses lugares, e que isso permita a constituição de políticas públicas de inserção social de sujeitos marginalizados – pontua. – Procuramos fazer isso de formas diversas e sempre utilizando linguagens que atinjam um público mais amplo: temos feito exposições; vamos lançar uma série de podcasts… Tudo isso primando por um rigor ético, tanto do ponto vista acadêmico quanto com esses sujeitos e com essas instituições. De modo geral usamos pseudônimos, por exemplo: nossa intenção nunca é revelar identidades, e sim trazer à tona experiências institucionais para incitar reflexões sobre esses espaços.

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Lançamento do livro

A pesquisa de Viviane Borges sobre Pinho rendeu um livro, batizado com o nome do artista, que será publicado em novembro; e que a historiadora define como “um trabalho colaborativo”.

– O centro do livro são as obras do Pinho; mas ele é feito com base em uma pesquisa acadêmica, que teve o apoio da Udesc, da Fapesc, do Arquivo Histórico da Penitenciária de Lisboa, do Centro de Estudos em Coimbra, de uma rede de pessoas que foram me ajudando até eu conseguir chegar a esse acervo mais pessoal do artista – ela comenta. – A redescoberta do Pinho só foi possível a partir do apoio público à pesquisa. E tem o apoio também da Manicómio, uma agência de design e espaço de arte em Portugal que trabalha com artistas que tiveram experiências ligadas a instituições psiquiátricas. A Manicómio fez da edição do livro uma obra de arte.

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A publicação do livro não é apenas a coroação do trabalho de pesquisa sobre Pinho, mas também a realização de um desejo do próprio artista.

– Quando tive acesso a textos que o Pinho escreveu, eu localizei um em que ele dizia exatamente isso: que ele queria que aquela denúncia fosse vista pelo maior número possível de pessoas – Viviane conclui. – Então, o bacana de trazer essa história à tona também é fazer essa vontade dele: fazer com que os quadros sejam vistos por muito mais gente, em Portugal e no Brasil.

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