Ahmad observa o meu carro. Pele morena, cabelo negro, semblante sério, o jovem de 22 anos não desvia os olhos do veículo, enquanto aguardo o motorista Ali comprar cigarros. Estamos em Maroun Er-Ras, extremo sul do Líbano. Nos postes, prédios e praças, há bandeiras amarelas com um fuzil AK-47 verde ao centro. É o símbolo do Hezbollah, o Partido de Deus, que aqui todos chamam de “resistência”. Maroun Er-Ras é o seu bastião.

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Ao contrário do que se imagina, não há homens armados pelas ruas.

– Ainda que passes duas semanas aqui, não os verás. Mas eles estão sempre por aí – advertira-me, na estrada de Beirute, um comerciante.

É por ícones que a organização extremista se faz onipresente: bandeiras, fotografias de seu líder, Hassan Nasrallah, e milhares de pôsteres com os rostos de jovens como Ahmad, aquele que me observa.

Ele está morto. Tombou no conflito de 2006, conhecido como a II Guerra do Líbano. Os bombardeios israelenses, que chegaram a Beirute, foram seguidos de uma ofensiva terrestre que começou por Maroun Er-Ras. Ahmad, até então um técnico em eletrônica, pegou em armas. Não para defender o Líbano, mas a família – os pais, Majid e Malah, e o irmão de quatro anos.

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– Não choramos por Ahmad, porque o oferecemos para a resistência. Hoje é ele é um mártir – diz a mãe.

Morrer na “guerra santa” é motivo de orgulho: garante à família do “mártir” um pôster no centro de Maroun Er-Ras. Além de uma ajuda financeira mensal, os pais de Ahmad receberam uma indenização para reconstruir sua casa, danificada no bombardeio.

Criado em 1982 para lutar contra a invasão israelense, o Hezbollah continuou a resistir contra a ocupação por toda a Guerra Civil Libanesa. Seus líderes se inspiram nas ideias do aiatolá Khomeini, e suas forças foram treinadas pela Guarda Revolucionária iraniana. Em 2000, Israel deixou o sul do Líbano, o que consolidou a força e a popularidade da milícia radical. Hoje, o grupo conta com deputados no parlamento, emissoras de rádio e TV, hospitais e escolas.

Ali, meu motorista, já comprou seu cigarro. Deixo o olhar de Ahmad no pôster. Ali quer fazer uma surpresa. Dirige-se até o alto da colina. Pede que eu cubra os olhos com as mãos:

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– Pode abri-los agora.

O que vejo são casas de bom porte, laranjais bem cuidados e uma área verde, que contrasta com o pedregoso lado de cá. Trata-se do norte da Galileia, Israel, a menos de 200 metros. Uma estrada de chão batido demarca a chamada Blue Line – a linha determinada pelas Nações Unidas entre os dois países, tecnicamente em guerra. Nas placas de trânsito, não existe a palavra Israel – é o Território da Palestina Ocupada.

Na colina, estão quatro militares indonésios da Unifil – força de paz da ONU que zela pela fronteira. Mesmo assim, são frequentes ataques com foguetes Katiusha do Hezbollah e sobrevoos de caças F-16 israelenses.

Na localidade de Kfar Kila, a placa anuncia em espanhol: “Puerta de Fátima”. Durante os 18 anos de ocupação israelense, este era, de fato, um portão: libaneses que trabalhavam em Israel cruzavam diariamente o que era chamado de “boa fronteira”. Hoje, não há mais a passagem. O local está coberto pelo muro de quase 10 metros de altura que Israel está construindo.

A sensação é de que a calma desta tarde pode ser quebrada por uma pedra, um tiro. Diante do verdejante território de Israel, pergunto a Ali se ele gostaria de um dia poder cruzar a fronteira e caminhar pelo outro lado.

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– A Israel não quero ir. Mas à Palestina, tenho vontade de conhecer – diz, referindo-se à Palestina bíblica.

Em 1925, seu avô deixava Maroun Er-Ras para levar a mulher até o hospital em Safad, hoje do lado israelense. Ali desabafa:

– Não sou religioso nem militante. Minha vida é trabalhar para que minha família possa ter o mínimo. Mas uma coisa eu garanto: se o Hezbollah um dia se for, isso aqui deixa de existir.

Líder raramente aparece em público

Seu rosto está presente em todos os vilarejos do sul do Líbano, mas ele aparece raramente em público. É o principal alvo da aviação e do serviço secreto israelenses. Sayyid Hassan Nasrallah, o carismático secretário-geral do Hezbollah, é um homem marcado para morrer. Sua formação teológica foi feita em Najaf, Iraque, e em escolas do Irã. Ocupa o cargo mais poderoso do Hezbollah desde 1992, quando substituiu o criador da milícia, Seyyed Abbas Mousawi, morto em um ataque israelense. O primeiro filho de Nasrallah também foi eliminado por Israel, em 1997. O líder é visto como herói do que o Hezbollah considera a expulsão de Israel de seu território.

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De volta ao inferno

Agosto de 2006. Em um quarto do Hotel Intercontinental, em Beirute, acordo com a notícia: “Israel bombardeou o vilarejo de Qana, no sul do Líbano, 19 mulheres e crianças mortas.” Era um erro, óbvio. Ninguém ataca uma residência de civis deliberadamente. Na TV, o alerta da CNN: “Israel declara trégua para investigar o incidente.”

– Vamos para o Sul – disse a meu intérprete.

A região, enclave do Hezbollah e a mais bombardeada nos 20 dias de guerra, era também a mais perigosa. Uma semana antes, uma fotógrafa da Associated Press morrera em um ataque israelense. Depois de seis horas de viagem pelas montanhas, chegamos a Qana, o vilarejo, uma carcaça urbana de prédios incinerados. Não havia quem entrevistar. Simplesmente porque não havia restado ninguém na vila – as pessoas ou estavam mortas ou tinham fugido. Caminhei por entre os destroços. Havia ainda chinelinhos, fraldas, colchonetes no local.

Fiquei cerca de 15 minutos em Qana. Logo, começou um boato de que ocorreria um novo bombardeio. Iniciamos a fuga.

Maio de 2012. Ao final da nova viagem pelo sul do Líbano, agora em paz, meu motorista Ali perguntou:

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– Queres ver Qana.

Como rejeitar? Entramos em uma rua de Sour e nos dirigimos ao vilarejo. Prédios novos nem me deixaram perceber que havíamos chegado ao local. Ao dobrarmos à esquerda, deparei com um memorial construído pelo Hezbollah: rostos em painéis e túmulos. Ao redor, um jardim com rosas. Um homem regava as flores. Casado com uma das mulheres mortas em 2006, pai de três crianças vítimas do ataque.

– Diariamente, ao cair da tarde, venho aqui. Olho as fotos e não acredito no que aconteceu – conta.

Qana parecia outro lugar. Nem de perto lembra o inferno por onde caminhei seis anos atrás. Fiquei de novo 15 minutos no local. Entrei no carro. Não levamos seis horas para voltar a Beirute, ao contrário de 2006, quando a estrada estava destruída. Foi apenas uma hora e meia. De total silêncio.

Churrasco de frente para Israel

Em Maroun Er-Ras, há um misto de parque público e área privada. Na entrada, bandeiras iranianas, palestinas, libanesas e do Hezbollah. Nos postes, os rostos do polêmico presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, e do herói da Revolução Iraniana, aiatolá Khomeini: “Este é um presente do Irã para o povo libanês, que resistiu”, está inscrito em uma placa.

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Adiante, há tendas com teto de palha, mesas e uma espécie de forno de barro. Espaços para piquenique e um churrasco tendo como cenário, à frente, montanhas de Israel. O cenário soa como provocação: duas torres de observação, pintadas com camuflagem para crianças libanesas brincarem de soldado. Há também um grande centro de eventos, com um campo de futebol de grama sintética.

– Não quero ir a locais onde as pessoas bebem álcool. Quero estar com quem compartilha de meus princípios – diz Hassan, 25 anos, um dos frequentadores do parque.

Atentados
BEIRUTE
O Hezbollah é acusado de vários ataques dentro e fora do Líbano:
– O grupo é acusado do assassinato do ex-primeiro-ministro libanês Rafik Hariri, em 2005, em um atentado no centro da capital libanesa.
– Em 1983, o Hezbollah atacou a embaixada dos EUA em Beirute. Mais de 60 pessoas morreram. No mesmo ano, caminhões-bomba foram detonados em edifícios que alojavam militares dos EUA e da França – 299 soldados dos dois países morreram.
BUENOS AIRES
– O Hezbollah é suspeito de ter realizado os atentados contra a embaixada de Israel na Argentina, em 1992, e contra a Amia, associação judaica, em 1994.
AVIÃO DA TWA
– Em 14 de junho de 1985, um avião que partia de Atenas rumo a Roma foi sequestrado por membros do Hezbollah. A aeronave foi desviada para Beirute, depois para a Argélia, retornando ao Líbano e partindo ainda para a Síria. A crise durou 17 dias.