Heloísa tinha 10 anos quando seu irmão, dois anos mais velho, morreu afogado em uma piscina, no Rio de Janeiro, onde a família morava. Quem passa por este tipo de situação costuma ficar traumatizada, evitando entrar na água para o resto da vida. A mãe de Heloísa não deixou que isso acontecesse com os filhos. Colocou as crianças na aula de natação para superar o medo. E deu certo, muito mais até do que ela imaginava.

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Anos mais tarde, a filha ficaria conhecida no mundo inteiro como a “mãe” da Família Schürmann, formada por cinco velejadores-aventureiros que, entre muitas outras façanhas, deram a volta ao mundo em um veleiro, mostrando que não há sonho impossível quando existe persistência e determinação.

Vida nova nos Estados Unidos

A história de Heloísa começa no Rio, onde nasceu há 64 anos, filha de um engenheiro que construía estradas de ferro e de uma dona de casa muito à frente de seu tempo, que colocava a educação dos oito filhos e filhas em primeiro lugar. A mãe ficou viúva aos 38 anos, e comandava a “Nossa Lojinha”, um pequeno comércio, com a ajuda dos filhos no contra turno escolar. Ela ainda encontrou tempo e dinheiro para criar outras duas crianças.

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– Mamãe nos fez estudar línguas (naquela época pouquíssima gente fazia isso) e nos incentivava a ler. Eu sempre li muito, especialmente livros de aventuras, como os de Julio Verne, e até enciclopédias.

Anos mais tarde, o irmão mais velho de Heloísa foi morar nos Estados Unidos, e a mãe foi visitá-lo. Voltou de lá transformada. Desde que ficara viúva, só usava roupas em tons de preto e branco. Chegou no aeroporto de jeans, camiseta e tênis, e com a certeza de que queria morar para sempre na América, porque lá, dizia ela, todos respeitavam os mais velhos.

A mãe levou consigo para Nova York as duas filhas, uma delas a Heloísa, então com 14 anos.

– Foi a melhor coisa que mamãe poderia ter feito. Eu adorei estar em outro país, vivi uma experiência incrível. Estava encantada – conta Heloísa.

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A mãe de Heloísa casou de novo nos Estados Unidos. Ela era um exemplo de mulher batalhadora, corajosa, agregadora, moderna e que adorava viajar.

Já diz o ditado: uma fruta nunca cai longe do pé.

Um amor que mudou o destino

Heloísa fazia faculdade em Nova York quando sua irmã, professora em uma escola de inglês de Florianópolis, precisou se afastar do trabalho por conta de uma gravidez de risco. Heloísa veio para substituí-la, e foi quando conheceu o catarinense Vilfredo Schürmann, que era o dono da escola. Foi paixão à primeira vista. Mas, depois de seis meses, ela voltou aos EUA para terminar o curso. Já formada, decidiu voltar em definitivo para o Brasil e viver aquela história de amor. Os dois estão juntos até hoje, mais de quatro décadas depois.

Por um tempo, Vilfredo e Heloísa tocaram juntos a escola de inglês. Depois ele mudou de ramo e ela continuou à frente da escola, ao mesmo tempo em que criava os três filhos – Pierre (hoje com 42 anos), David (38) e Wilhelm (36). Para dar conta de tudo, precisava se desdobrar em várias. Foi nesta época que ganhou o apelido que a acompanha até hoje: Formiga, um bichinho trabalhador que não para nunca. O segredo para dar conta de tudo, revela ela, é ser organizada, qualidade que lhe seria muito útil mais adiante, morando por anos a fio dentro de um veleiro.

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Nas férias de 1974, a mãe de Heloísa deu de presente à filha e ao genro um cruzeiro pelo Caribe. Foi o estopim para tudo o que viria depois. Os dois, que sempre foram fascinados pelo mar, se apaixonaram pelas viagens de barco. Na volta, uma ideia ficou martelando na cabeça dos dois: voltar a velejar e, de preferência, num veleiro próprio. A partir daí, tudo começou a mudar. Quase todo o dinheiro que entrava era guardado para a compra do primeiro barco – a casa em que a família morava em Santo Antônio de Lisboa, na beira do mar, era simples, de madeira, e precisava de reformas que nunca foram feitas, porque investir na grande aventura de navegar tornou-se mais urgente e muito mais interessante.

No começo eles ainda nem sonhavam com uma volta ao mundo. Ficariam felizes se navegassem, mais uma vez, pelo mar do Caribe, mas levando as crianças nesta grande aventura. Aos poucos, porém, os planos foram se tornando mais audaciosos. E se solidificando. Assim começou a primeira grande aventura… O resto da história todo mundo já conhece, mas é tão surpreendente que vale a pena repetir: a Família Schürmann passou 10 anos no mar, na sua primeira grande viagem transatlântica. Outras vieram depois e, com certeza, muitas mais estão a caminho.

A dona do barco

Os meninos tinham sete, 10 e 15 anos em abril de 1984, quando o veleiro zarpou de Florianópolis para dar a volta ao mundo. Muita gente achava que era irresponsabilidade de Vilfredo e Heloísa saírem assim, tirar as crianças da escola para morar em um barco. Mas o casal tinha a certeza de que os meninos aprenderiam muito mais navegando do que na sala de aula – ainda mais que ela, que sempre foi professora, poderia continuar dando aulas particulares aos três, quando eles não pudessem estudar por correspondência ou frequentar a escola do local onde atracassem o barco.

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– Foi um sonho sonhado a cinco. As crianças queriam fazer parte desta aventura, e nos preparamos durante 10 anos para a viagem, não foi um ato impensado ou irresponsável – explica Heloísa.

– Os três garotos cresceram a bordo. Na volta ao Brasil, 10 anos depois, a experiência de viver no mar havia contribuído para transformá-los em jovens saudáveis e bem-informados, preparados para enfrentar a vida de maneira ética e responsável, com determinação para atingir seus objetivos, sempre respeitando o ser humano e o meio ambiente – diz, orgulhosa, a mamãe-coruja.

Os Schürmann foram a primeira família brasileira a completar uma volta ao mundo a bordo de um veleiro. Mais importante do que a fascinante oportunidade de conhecer o mundo, a convivência permitiu a Vilfredo, Heloísa, Wilhelm, David e Pierre o privilégio de compartilhar em família a grande aventura da vida.

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Neste longo período no mar, Heloísa pode colocar em prática todos os ensinamentos que recebeu da mãe: a persistência, o otimismo, a praticidade, a simplicidade, o desapego, a paciência, o bom humor, a organização… Se a vida de uma mãe, esposa e profissional em terra firme já não é fácil, muito mais difícil se torna dentro de um barco pequeno, em alto-mar, onde as tarefas se multiplicam (e, muitas vezes, os problemas também). Vilfredo era o comandante do veleiro, questões de navegação ele que resolvia. Mas quando o assunto era a vida a bordo, quem mandava era Heloísa. E ponto final.

De todas as qualidades de Heloísa, talvez a que mais se sobressaia seja a coragem: de enfrentar tudo e todos (menos baratas – ela entra em pânico quando vê uma) para realizar o sonho de navegar com a família. Aceitou vender tudo o que tinham e viver de forma muito simples no barco, por longos anos, inclusive passando em claro durante tempestades alto-mar. Mas a maior prova de coragem, amor e desprendimento ainda estava por vir. E que, mais uma vez, mudaria para sempre a vida de Heloísa e de todos os Schürmann.

Mãe mais uma vez

Na volta dos 10 anos de vida no mar, a família Schürmann já tinha virado celebridade. Fama que só aumentou durante a aventura seguinte: a Magalhães Global Adventure. Durante dois anos e meio, a família refez a rota do navegador português Fernão de Magalhães, que foi o primeiro homem a circunavegar o planeta, provando que a terra era redonda. O sonho – acompanhado todos os domingos por milhões de brasileiros em um quadro no programa Fantástico, da Rede Globo, começou a virar realidade no dia 23 de novembro de 1997, após três anos de cuidadoso planejamento. Mas desta vez, com uma pequena grande novidade: a filha Kat, de apenas cinco anos de idade.

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– Kat apareceu para abalar as estruturas. Ela mudou nossas vidas de cabeça para baixo – conta Heloísa. O seu tom de voz muda e a voz fica embargada quando fala da filha, com quem conviveu por 11 anos, até a morte da menina, pouco antes de completar 14 anos.

Foi neste episódio que Heloísa se revelou em plenitude, como mãe e mulher. Os pais de Kat, que os Schürmann conheceram anos antes, morreram vítimas da Aids. Primeiro a mãe (ela foi contaminada durante uma transfusão de sangue), depois o pai – que foi quem pediu para Heloísa e Vilfredo criarem a menina, já que ele estava doente e sabia que viveria pouco tempo. Kat foi adotada legalmente, quando tinha três anos. Ela teve uma vida muito feliz ao lado dos novos pais e dos três irmãos, participando de incríveis aventuras por quase 11 anos. Em maio de 2006, não resistiu a uma pneumonia.

Na época, Heloísa escreveu no site da família: Desde que nasceu, Kat lutava bravamente para viver e aproveitar intensamente cada instante junto à família, amigos e à natureza, a qual tanto amava e defendia. Muitos não sabem, mas Kat era soropositiva desde que nasceu. A adotamos ainda pequena, na Nova Zelândia, sabendo de sua condição. Claro, sabíamos que seria muito difícil. Kat era muito pequena, o seu estado de saúde sempre foi preocupante. Quando a conhecemos, exigia sérios cuidados. Mas não poderíamos deixar de dar uma chance de lutar pela vida daquele anjinho. Ela queria viver! Estava em seu olhar! E foi a decisão mais importante que tomamos na vida!

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Kat pincelou nuances de pink na vida da Família Schürmann, formada por quatro homens, além de Heloísa. O barco virou uma grande casa de bonecas para Kat.

– Ela foi um raio de sol na nossa vida – sintetiza a mãe.

A vovó aventura

Seis anos se passaram. A dor pela perda da Kat transformou-se em uma saudade enorme, mas a vida de Heloísa e sua família segue em frente e, como sempre, cheia de planos. Heloísa e Vilfredo têm cinco netos, com idades que variam dos 21 anos a pouco mais de um mês de idade (um casal de gêmeos que nasceu no início de novembro).

Heloísa diz que é uma avó de brincar, de fazer aventura, de velejar com os netos, e não aquelas “vovós de fazer bolinho” – embora em uma foto guardada no celular, ela está na cozinha fazendo omelete com o neto Kiang.

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Cada filho tem a sua própria casa, em estados diferentes, mas vivem em contato uns com os outros e seguidamente marcam encontros presenciais de toda a família – incluindo Edy, o padrasto de Heloísa, que tem 90 anos e mora nos Estados Unidos.

Ela sempre sabe onde cada filho está, o que não é fácil, já que todos os cinco membros dos Schürmann tornaram-se cidadãos do mundo e estão sempre viajando para algum canto do planeta, à trabalho ou lazer.

– A tecnologia é uma maravilha. Nos falamos sempre pelo Skype ou celular. Continuamos tão unidos quanto éramos no tempo em que morávamos todos no barco – afirma.

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Heloísa e Vilfredo moram juntos, na casa de Bombinhas, embora às vezes passem muito tempo sem aparecer lá, por conta dos compromissos profissionais de ambos. Os dois dão palestras por todo o Brasil e no exterior sobre temas ligados à liderança de equipes, segurança a bordo, educação e ecologia, todos ligados aos mais de 20 anos de aventura no veleiro. Junto com o filho David, são sócios da Schürmann Film, empresa que engloba todas as atividades profissionais da família.

Mas, como trabalho não é tudo na vida, Heloísa sempre tira um tempo na sua agenda para cuidar de si – do corpo e da mente. Gosta de fazer longas caminhadas na praia e de meditar – fez isso, inclusive, sentada na posição de lótus na poltrona do avião (que estava quase vazio), que a trouxe de São Paulo, na véspera desta entrevista.

Os Schürmann já estão planejando a nova aventura: no fim do próximo ano devem embarcar no veleiro, que está sendo construído em Itajaí, rumo a uma nova volta ao mundo, passando por muitos lugares que ainda não conhecem e revendo outros onde, com certeza, deixaram muitos amigos.

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