Havia algo de selvagem no humor de Hector Babenco, disse o ator Willem Dafoe em entrevista a ZH, por ocasião do lançamento de Meu amigo hindu(2015). Neste longa que acabou sendo o filme-testamento do cineasta morto na noite desta quarta-feira, aos 70 anos, o ator norte-americano interpretava um personagem inspirado no próprio Babenco, em uma trama que lembrava sua jornada de superação de um câncer linfático, duas décadas atrás. Mais do que tornar pública a própria história, Meu amigo hindu permitiu conhecer a autoironia que marcou toda a peculiar trajetória do diretor brasileiro que nasceu na Argentina (em Mar del Plata) e fez carreira em Hollywood na esteira do sucesso internacional de Pixote: A lei do mais fraco (1981).
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Há amargura em Meu amigo hindu. Havia algo parecido em Coração iluminado (1996), outro título de tintas autobiográficas lançado 20 anos antes – a história, coescrita por Ricardo Piglia, era a de um homem que voltava à cidade natal após duas décadas distante de suas origens. Vale lembrar que Babenco radicou-se no Brasil ainda jovem, foi aos EUA para realizar O beijo da Mulher Aranha (1985), Ironweed (1987) e Brincando nos campos do senhor (1991), retornando à América do Sul justamente com Coração iluminado, seu primeiro longa após a batalha contra a doença que depois seria retratada em Meu amigo hindu.

Mais do que desterritorialização, Babenco sempre falou sobre abandono. Pixote talvez seja o mais icônico dos filmes sobre o tema realizados no Brasil. A célebre pietá da prostituta interpretada por Marília Pêra e o menor abandonado Fernando Ramos da Silva, em seu ato final, é uma daquelas imagens que valem por uma filmografia inteira. Há uma ligação evidente entre o menino e o criminoso personagem-título de Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977), o outro grande trabalho de seu início de carreira: os personagens marginais o interessavam especialmente.
Pixote foi premiado nos festivais de Locarno e San Sebastián e ganhou uma indicação ao Globo de Ouro de melhor filme em língua estrangeira. Abriu as portas de Hollywood para o cineasta, que chegaria ao auge com a indicação ao Oscar obtida por O beijo da Mulher Aranha – por sinal, o longa que levaria Sonia Braga à meca do cinema. O câncer forçou seu afastamento e, anos depois, o recomeço no Sul, mesmo que Ironweed, com Jack Nicholson e Meryl Streep (ambos indicados ao Oscar), e Brincando nos campos do senhor, com Daryl Hannah, tenham sido bem-sucedidos nos EUA, tanto pela venda de ingressos nas bilheterias quanto pela recepção por parte da crítica.

O badalado Carandiru (2003) é uma espécie de filme-síntese dessa carreira: tem a grandiosidade das produções de Hollywood e aquela atenção aos homens e mulheres esquecidos pela sociedade. Pena que, em uma galeria de grandes realizações, tenha sido justamente este um dos exemplares daquilo que se costuma chamar de “filme menor”.
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