Dois quartos, sala, cozinha e banheiro. São 40 metros quadrados distantes da área grande onde Marilea Matteussi cresceu e viveu a maior parte da vida. Em um dia, daqueles difíceis de tirar da memória, tudo foi abaixo. A lama levou parte do que o pai da aposentada trabalhou décadas para construir. Ela descreve aquela noite de domingo como inacreditável. Juntamente com a família, não achava que seria possível o barro ceder e arrastar o que tinha pela frente. Foi por isso, inclusive, que levaram tanto tempo para deixar a casa.

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Assim que saíram do imóvel, a terra tomou conta da Rua União da Vitória, no bairro Valparaíso, e carregou imóveis, veículos, árvores. Para se salvar, pularam de muro em muro pelas casas de vizinhos até encontrar um porto seguro no topo de outro morro. Não estavam sozinhos. Ao menos 22 pessoas fugiram do deslizamento pela mesma picada no mato. Depois da catástrofe, mesmo com o imóvel atingido, ela optou por voltar, mas quando a chuva caía, a paz era levada. Então, resolveu sair e pagar aluguel. Marilea foi um dos 3,5 mil desabrigados da tragédia de 2008, quando chegaram a ser abertos 76 abrigos em Blumenau. Há 10 anos, o número de encostas que cederam chegou a três mil (confira mais números na tabela).

Aproximadamente 1,2 mil pessoas viveram por ao menos um período em moradias provisórias de Blumenau e 900 receberam o aluguel social até chegar uma solução definitiva para os imóveis perdidos. Quando soube que teria a chance de novamente ter um lar para chamar de seu, por meio do programa Minha Casa Minha Vida, que atendeu 1.824 famílias afetadas naquela época, as lágrimas de Marilea foram inevitáveis. Ainda com os olhos marejados pela recordação que revive na memória, afirma que se ajoelhou e agradeceu. Pai e filha vivem desde 2012 na Rua Hermann Tribess, no Residencial Novo Lar.

– Não é que nem a casa da gente, de repente mudou tudo, mas está bom aqui – afirma Marilea.

::: Acompanhe a cobertura do Santa sobre os 10 anos da tragédia

No conforto e segurança de um novo lar, muitas das pessoas atingidas só pensam em seguir em frente. O que passou é aprendizado. Isabel Krug morava em uma transversal da Rua Emílio Tallmann, no Valparaíso. Até o último minuto resistiu em acreditar que o deslizamento poderia afetar a casa que construiu com o marido. Quando optaram por sair, vendo uma fenda que crescia na varanda do imóvel, quase não tiveram tempo de buscar abrigo. O deslizamento foi rápido e levou tudo o que estava ao redor. As fotos que ela mostra no celular dão uma dimensão do tamanho do estrago e do perigo tão próximos.

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O apartamento que o casal divide hoje com uma neta e um filho é menor do que a casa onde residiam antes, mas a tranquilidade de dormir quando a chuva cai, é impagável.

– Aqui sou feliz. Perguntam se tenho saudades de lá, e digo que só tenho lembranças. Estamos no céu agora – comemora.

A felicidade dela é bem semelhante a de moradores dos loteamentos Novo Horizonte, no Gaspar Mirim, e Arábia Saudita, na Margem Esquerda, na cidade de Gaspar. É no local conhecido pelo nome do país estrangeiro por conta de doações árabes que mora o tintureiro Pedro Lamim, juntamente com outras 450 pessoas. Elas residiam nos bairros Belchior, Arraial, Sertão Verde e também tiveram as casas destruídas pela força da natureza. Somente em 2008, 700 residências foram soterradas pelos deslizamentos em Gaspar. A infraestrutura do lugar ainda não está pronta, mesmo passados 10 anos. O posto de saúde foi finalizado recentemente, drenagem e esgoto também, mas a esperança é em um futuro melhor.

Da casa de um vizinho, mais no alto do Sertão Verde, Lamim conta que viu a residência ser levada por uma onda de lama. Não tirou nada do imóvel. Pela mata conseguiu fugir com a mulher e três filhos até a BR-470. Juntos passaram oito dias em um abrigo e depois foram pagar aluguel. Naquele domingo, ele perdeu mais do que a casa, amigos se foram por acreditar que se tratava de mais uma enchente como tantas outras que haviam enfrentado naquele mesmo lugar. Ao todo, 21 pessoas morreram durante a catástrofe em Gaspar.

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A casa que Lamim divide atualmente com a família, fruto de doação do reino da Arábia Saudita e da prefeitura de Gaspar, ganhou novos cômodos, muro, garagem. Não é como a antiga, mas é um recomeço.

– Deu um novo ânimo para a gente. Fomos muito ajudados, não ganhamos só casa, até móveis a gente recebeu. Se foi bom? Não. Bom seria se não tivesse acontecido, mas a gente foi bem recolocado. Não tenho do que reclamar – afirma o tintureiro.

HABITAÇÃO É UM DOS DESAFIOS DAS AUTORIDADES

A área em que está o loteamento Arábia Saudita abriga outros terrenos da prefeitura. O espaço é destinado exclusivamente para o uso em caso de pessoas atingidas por algum tipo de calamidade, aponta o coordenador da Defesa Civil de Gaspar, Rafael Araújo Freitas. Ele exemplifica como será a utilização dos locais com um caso real: em uma enxurrada de janeiro deste ano, deslizamentos atingiram imóveis no bairro Gaspar Mirim. As famílias foram acolhidas em abrigo e as casas interditadas. A prefeitura conseguiu recursos – que aguardam liberação – para agora reconstruir os imóveis, nessas áreas dentro do loteamento, que é seguro.

– Quando a gente receber o estudo atualizado de áreas de risco, que está sendo feito pelo Serviço Geológico do Brasil, e entender e conseguir recursos para construir mais casas, vamos dizer 10 residências, a gente pode pegar 10 famílias de área de risco e fazer essa transferência. São possibilidades que existem – afirma Freitas.

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Em Blumenau, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e apontados pela Secretaria Municipal de Defesa do Cidadão, estima-se que cerca de 80 mil pessoas vivem em área passível de inundações ou deslizamentos. Além disso, 9% das edificações da cidade, aproximadamente 15 mil construções, estão em local de alto risco. Os números reforçam a importância de investir em locais considerados mais seguros, como ocorre com os residenciais do Minha Casa Minha Vida. Um deles, inclusive, está programado para ser entregue em breve no bairro Itoupavazinha, com mais 144 apartamentos.

– A partir do momento que tiver linhas de financiamento abertas, vamos nos inscrever para poder ter unidades habitacionais aqui na cidade – afirma o prefeito de Blumenau, Mário Hildebrandt.

Secretário de Assistência Social no período da tragédia, em 2008, Hildebrandt ressalta que passados 10 anos o número de apartamentos entregues é maior que o dobro de famílias que perderam as casas na catástrofe, o que permitiu tirar mais um percentual da população de áreas de risco.