Tal qual um conto de fadas, este poderia começar com o clichê “era uma vez…”. Era uma vez uma cidade no Sul do Brasil onde a arte teatral engatinhava, sobrevivendo de uns tantos abnegados e raras apresentações. Isso numa sociedade plenamente voltada ao trabalho, como se mostrava Joinville no começo dos anos 1980.
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Mas eis que surge, das rodas de teoria, um grupo chamado Caminhando, determinando a ida imediata ao encontro do povo e a produção em série, tocando fogo na pólvora já espalhada pelo chão. Mas essa história não possui final feliz, simplesmente porque ela ainda não terminou. Exatos 34 anos depois de surgir, o Caminhando continua na ativa, e, do front, observa o legado que deixou.
Essa trajetória salpicada de avanços remonta ao alvorecer de 1982, quando o ator Jairo Maciel (nascido em Araranguá) chegou a Joinville, morada de sua família. Vindo do fazer teatral em São Paulo, era natural que procurasse aqui pares que o mantivessem na lida artística. Encontrou Dionisio Maçaneiro, que dava aulas de teatro na Casa da Cultura, e outros artistas locais, como Luis Alberto Corrêa, o Poeta.
– Nessa época, o teatro era pouco, incipiente e irrelevante na cidade – lembra.
Assim, um mês depois de sua chegada, Maciel já ministrava uma oficina de teatro na antiga sede do PT, na rua Brasil, e foi nela que surgiu o núcleo do Grupo Caminhando, oficializado em ata no dia 15 de maio de 1982. Incentivado pelo então secretário de Cultura, Miraci Dereti, ele escreveu seu primeiro texto infantil, com o qual a companhia estreou: Dibidi à Procura de Amigos, musical que rodou por escolas e centros sociais e passou pela Biblioteca Municipal e a Sociedade Harmonia-Lyra.
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Não demorou para vir o segundo espetáculo, Um Lugar Ideal, com trilha sonora executada ao vivo por músicos da Casa da Cultura. Mas o grande hit do Caminhando foi Trem da Imaginação, um projeto realizado por meio da Secretaria de Cultura e a antiga 5a Ucre. Com jogos dramáticos e música ao vivo, a peça ficou 16 anos em cartaz e chegou a 60 mil pessoas.
Motivador ou não, fato é que em 1984 a cidade já contava com 17 grupos de teatro, divididos em dois polos de ensaio e criação: o do Sesi (onde o Caminhando ensaiava) e o da Casa da Cultura. Com tal efervescência, era normal que atores e diretores atuassem em vários núcleos. Silvestre Ferreira, por exemplo, fazia parte do Cheiro de Vida, que viajou por dois anos com O Boi de Mamão, um dos espetáculos mais vistos no País entre 1985 e 1986.
– A época era de engajamento artístico. As eleições diretas e o fim do regime militar eram bandeiras de luta. Os dois núcleos, Casa da Cultura (com o Borges de Garuva) e Sesi, com o Jairo Maciel, protagonizaram o movimento – conta Silvestre, que anos mais tarde criaria a Dionisos Teatro.
Esse espírito guerrilheiro citado por Ferreira transpareceu em A Feira, espetáculo de rua que Maciel escreveu depois da experiência com teatro infantil. A encenação, porém, foi proibida.
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– Chamávamos a plateia para queimar os cenários, em protesto. Claro que não era o nosso cenário de fato, mas era uma forma de chamar a atenção para a ocupação do espaço público – Maciel recorda.
Mudança para São Paulo
Após cinco peças infanto-juvenis com o Caminhando e trabalhos com outros grupos, em 1988, Jairo Maciel se desligou do Sesi, onde trabalhava, e voltou para São Paulo. Lá, reformou o Caminhando ao lado de Lucimar de Oliveira e outros atores. Com ele também foi o sucesso O Trem da Imaginação, que continuou no portfólio da companhia.
Porém, a nova fase trouxe diversidade temática e estilística ao grupo, que só interrompeu as atividades entre 1990 e 1995, quando Maciel morou em Nova York. Longe de Joinville, já são nove peças produzidas.
Um desses trabalhos é Dona Maria a Louca, espetáculo desde 2002 em cartaz que conta com Maria Hipólita, primeira atriz cega formada em escola de teatro no Brasil. Nos últimos tempos, o Caminhando se aproximou da linguagem do grotesco, por sinal, tema do pós-doutorado de Maciel.
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A última vez que o Caminhando esteve em Joinville foi no final dos anos 1990, quando ficou uma semana na cidade apresentando Os Palhaços, de Timochenko Webhi, em lugares como a Univille, Tupy, Colégio Bom Jesus e Shopping Mueller. Foi o reencontro de Jairo com o berço do grupo que comanda até hoje.
– Falar de teatro em Joinville sem falar no Caminhando é uma injustiça. O grupo teve uma relevância incrível. Ele representou o fortalecimento da filosofia do teatro e da formação de novos grupos na cidade – afirma o diretor, também presidente da Federação Catarinense de Teatro (Fecate) de 1984 a 1986.
Depoimento de Borges de Garuva, ator, diretor e escritor.
“Quando voltei a Joinville em 1983, depois de quatro anos estudando em Curitiba, Jairo Maciel tinha constituído aqui um núcleo de produção cênica bem interessante. Eu vinha para trabalhar na Casa da Cultura, a convite da Fundação Cultural. Ele atuava na Univille e, depois, no Sesi, já com o Grupo Caminhando. Mesmo havendo alguma tensão entre nossas abordagens, creio que nossos trabalhos se encontravam e se articulavam em torno do movimento teatral joinvilense e catarinense, cujo ímpeto naquele momento deveu-se muito ao Jairo.
Nossas oficinas e espetáculos tinham um cunho especialmente didático, porque a prática teatral em Joinville vinha passando por um grande silêncio desde que se calaram as vozes nos anos 1970, e estávamos sempre preocupados com a formação de público.
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Todos trabalhávamos em condições precaríssimas. Não havia espaços adequados para a prática da cena; não havia recursos públicos (a não ser migalhas arrancadas com muita sola gasta nos corredores do governo e das empresas); o público, quando aparecia, não sabia ainda muito bem a que vinha, pois o que se esperava ver no palco era sempre alguma coisa que lembrasse a televisão.
O trabalho quase apostólico desses grupos reuniu entre 1982 e 1988, mais ou menos, uma pequena multidão de gente apaixonada por teatro. Os grupos e o movimento teatral eram espaços de convivência e desenvolvimento pessoal, mas também foram importantes espaços de resistência e de militância contra o vazio de pensamento que a ditadura havia criado por aqui.”