Foi um Mundial atípico. Imagine um homem – ou mulher – que nasceu em 1980. Provavelmente, a primeira Copa do Mundo que ele tenha na memória é a de 1986. Se não é esta, é a de 1990. Em ambas, derrotas crassas. Na primeira, no México, para a França, nos pênaltis, nas quartas de final. Na segunda, na Itália, para a Argentina, nas oitavas, com o volante Alemão traumatizando uma geração inteira sem cometer falta em Maradona, que passou para Caniggia, que driblou Taffarel e tocou para o gol, já no fim. A culpa ficou com Dunga.
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Este menino de 10 anos cresceu e, em 1994, comemorou sua primeira Copa do Mundo após decisão por pênaltis inesquecível diante de uma Itália densa. Uma Itália que tinha Baresi, Maldini e Baggio, três craques. Quatro anos mais tarde, o fiasco na França rendeu ao jovem de 18 anos um estigma que só não pode ser considerado como uma “síndrome de vira-latas” porque a Seleção já era a maior de todas as campeãs, com quatro títulos. Mas a humilhação foi tamanha: 3 a 0 em uma final soou constrangedor.
A Copa de 2002 foi atípica porque talvez tenha sido a primeira, desde 1962, que a Seleção disputava sem a companhia do favoritismo. As apostas recaíam, no máximo, às semifinais. França e Espanha eram as rainhas. A Itália, a princesa. E a sempre forte Alemanha, o bobo da corte que no final ganhou status de príncipe. O Brasil virou rei. Mas, até a conquista do trono, a luta foi árdua. Começou com três trocas de técnicos durante as Eliminatórias: de Luxemburgo para Candinho (provisório), de Candinho para Leão. E finalmente para Luiz Felipe Scolari.
Duras, as Eliminatórias terminaram com uma classificação brasileira na última rodada – vitória por 3 a 0 sobre a Venezuela, no Maranhão. Aos trancos e barrancos, o Brasil estava na Copa. E mantinha a reputação de ser a única seleção a disputar todas – a 17ª em 17 edições.
O rapaz, aquele que nasceu em 80, acostumou-se a assistir Copa do Mundo à tarde e à noite, nos fusos da Europa e da América do Norte. Mas naquele domingo, 30 de junho, ele madrugou com outros milhões para ver Ronaldo – o último grande atacante brasileiro – selar uma recuperação improvável, que elevou a “Família Scolari” como detentora do quinto título da maior de todas as seleções – pelos cinco troféus, não pelo futebol longe do exuberante, mas eficiente, da Copa.
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De degrau em degrau, passaram-se a Turquia (com um pênalti fora da área marcado a favor do Brasil e o ato cênico de Rivaldo fingindo agressão, o que resultou na expulsão do defensor turco e, posteriormente, multa de R$ 19 mil ao brasileiro), a China e a Costa Rica, com três vitórias e o primeiro lugar no grupo. Nas oitavas, a Bélgica foi a vítima. Nas quartas, o desafio inglês se transformou em arte de Ronaldinho. Nas semifinais, a mesma Turquia decretou o jogo mais suado até então, salvo pelo bico do pé direito de Ronaldo, em meio a três zagueiros, a mão esquerda do goleiro e a trave.
A Alemanha da final não tinha o brilho da de 74, nem o pragmatismo da de 54, muito menos as estrelas de 90, mas era um adversário duro. Aí, apareceu o craque. Craque é aquele que não “pipoca”. Que mete o pé mesmo sabendo que tem tudo para perder a bola. Ronaldo não desistiu.
A dor das torções e das cirurgias no joelho direito sobressaltou o passado recente. Emanou dali uma força que surpreendeu o defensor alemão, que perdeu a bola e a tocou de novo somente quando o atacante corria com o dedo indicador da mão direita erguido, na direção oposta a todos.
A “Família Scolari” fez com que a confiança voltasse ao futebol nacional com um grupo sem Romário – até então, a estrela-mor. Felipão foi contestado por deixá-lo de fora, mas acabou reverenciado por impor disciplina tática a um time solto. Dos brancos Marcos, Lúcio e Edmilson aos negros Ronaldinho, Kleberson e Roque Júnior, a Seleção foi a síntese brasileira da mistura. Misturou – além do fuso horário de milhões que acordaram às 3h, às 5h e às 8h – samba e seriedade, e levou a taça. A quinta.
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O penta é, até que se prove o contrário, a abolição da síndrome do Stade de France – uma espécie de Maracanazo moderno e longe de casa. E o fim de uma Seleção insossa, por meio de um Rivaldo, de um Lúcio, de um Marcos, de um Ronaldinho, de um Cafu, de um Gilberto Silva, mas principalmente de um Ronaldo que transformou doença em milagre.