Ficar frente a frente com Gustavo Kuerten, o ex-tenista tricampeão de Roland Garros, número 1 do mundo e um dos poucos ídolos incontestáveis da história do Brasil, é um carrossel de emoções. Ter tempo para perguntar e ouvir histórias e opiniões do Guga, em uma entrevista que teve direito a plateia absorvendo o que era dito, transforma o dia de qualquer um. São olhares diretos e traduzidos em respostas sobre o jeito que ele enxerga o mundo.

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Aos 43 anos, fazendo todo dia fisioterapia por conta da lesão no quadril que abreviou a carreira dentro das quadras, Guga ainda é um competidor, ao menos na atenção das crianças. Durante a semana de tênis que leva o nome dele, em Jurerê, foram milhares de fotos, apertos de mão, autógrafos e carinho, um combustível que ele faz questão de ter.

Eu só não consigo imaginar o isolamento, o estar sozinho, ou distante disso que é a emoção da vida, essa energia de estar junto, contribuir e fazer algo.

Transformar o tênis no Brasil é uma missão que Guga abraçou desde que chegou ao topo do mundo. Dar oportunidade, seja através do instituto que leva o nome ou através das escolinhas que possui, é uma das coisas que movem o manezinho. A seguir, confira o bate-papo com o pai da Maria Augusta e do Luis Felipe, o Guga.

São 11 anos desde que você deixou o tênis profissional. Tem alguma saudade da quadra?

Eu já senti mais. Eu estive com os meninos fazendo uma imersão nos treinamentos com o Time Guga e dá uma vontade de jogar, mas o meu corpo limita bastante e isso ameniza. O distanciamento do tempo vai abrindo novas perspectivas e outras vontades. É bem provável que se eu tivesse uma condição mais saudável eu estaria na quadra por mais tempo, mas isso também me dá oportunidade de fazer tantas outras coisas. Fico tão feliz com a minha fisioterapia diária. Se tiver algo que eu puder me dedicar, com intenção, seja dentro, fora ou ainda vinculado ao tênis, em outras iniciativas que a gente tem ainda vale a pena.

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O grande trunfo é que eu ainda posso escolher, mas a maioria das pessoas simplesmente precisam fazer tarefas diárias, que são dolorosas e de repente não é de tão agrado, mas é necessário.
Gustavo Kuerten
“O distanciamento do tempo vai abrindo novas perspectivas e outras vontades”, diz Guga (Foto: Leo Munhoz/NSC Total)

Tem algum cheiro ou gosto que te faça recordar o tempo de profissional?

Sempre que me vem algum tipo de sentimento, não envolve nenhum dos outros sentidos. Ele acaba tendo essa sensação da plenitude, da entrega, de viver algo com um nível de profundidade muito grande. Esses torneios, principalmente os maiores, ficam na lembrança junto com os pontos mais preciosos, como montar uma quadra de tênis no Maria do Mar (hotel na Capital), de olhar hoje para o Larri (Passos) e lembrar eu sentadinho esperando ele passar. A BR-101 ainda era ida e vinda, e volta e meia tinha que parar num posto policial para ligar lá para casa pra avisar. Aí a Dete (empregada) descia a ladeira e dizia: “ele não vai vir porque ficou preso na estrada”. Essas emoções que são fáceis de resgatar porque tudo foi muito real, bem gostoso e até doloroso em certos momentos, mas marcantes.

Ao longo do caminho, até a maior tragédia das nossas vidas que foi logo no início perder o pai (Aldo) lá em Curitiba, aos poucos nós fomos montando alguns encaixes para trazer um embalo que fosse menos amedrontador como criança, que trouxesse alguma esperança pra frente, e cada vez que esse canal de emoção se apresenta ele é eterno. Sempre me dediquei muito a isso, talvez valorizando o esforço das pessoas, olhando uma série de movimentos que me deram condições.

Todas as ações quando eu vejo toda essa felicidade, esse carinho transborda e já automaticamente toma conta de uma história específica, claro como o coração de Roland Garros, o primeiro título, cada um tem o seu enredo pontual do acontecimento. É bem provável que todos se sintam ainda mais próximos, não parece que eu tô há tanto tempo sem entrar na quadra.

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O primeiro Roland Garros foi há 22 anos e as pessoas ainda curtem muito e têm uma presença real esses acontecimentos. Um do azul e amarelo, um do desenho do coração, outro salvando o match point, mas todos presentes numa forma emotiva.
Relação de cumplicidade e confiança com Larri Passos
Relação de cumplicidade e confiança com Larri Passos (Foto: STEFAN HESSE/AFP)

Desde a aposentadoria você deixou claro que a sua missão era melhorar o tênis no Brasil. É isso mesmo?

Sempre foi. Acredito que a gente chegou num ponto que até extrapolou as linhas das quadras e a gente conseguiu sacramentar a importância mais verdadeira do esporte, que vai muito além do alto rendimento.

É o perder ou ganhar?

É a vida que se apresenta através das bolas, da quadra, da raquete, e que no final nós temos 99% dessa garotada podendo usufruir disso, e só outro restinho de 1% que vai decolar numa aventura bem mais profunda nas quadras. Ao longo desse caminho a gente percebeu bem que o tênis, como qualquer outro esporte, vai precisar desse suporte. As pessoas que passam, gostam, brincam, jogando uma, duas, três vezes, cinco por semana sem grandes pretensões, mas têm uma relação muito boa, que torcem e naturalmente fazem o ciclo do mercado do tênis proliferar, os torneios vão aparecendo e isso tudo leva a ter em maior escala tenistas profissionais de alto padrão.

A gente costuma ver de cima pra baixo, já o final da cadeia, que é muito imediatismo para uma aposta amadora do esporte. É olhar como ganhou tá ótimo e se perdeu não vale nada. É uma filosofia bem pertinente do futebol, a cultura que o brasileiro dialoga no esporte e que desde as Olimpíadas a gente aproveitou o momento para trazer essa informação e cultivar as importâncias mais valiosas do esporte. Na Semana (Guga) tem espaço para esses garotos que vão ser as estrelas de Copa Davis, de Federation Cup e que vão representar o Brasil no profissional, mas muito mais espaço para o jogador sem ambição competitiva.

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No começo da carreira, sem assessor de imprensa, você ligava para a redação e falava que tinha vencido, dava notícia. Você quis muito ser atleta. Hoje dá para enxergar isso nos futuros profissionais?

Esse é o grande desafio da juventude atual com um acesso enorme e uma dificuldade e perturbação porque é muito fácil trocar de direção. Quando tu tens 50 chances, poxa, até tu chegar na última tu podes ir trocando uma por uma a cada dia e nem aprofundou para saber se ia dar certo a primeira. O processo de realização vai de encontro a isso, nada vai ser suficiente se estiver pronto já, de graça, o gosto passa muito ligeiro.

Como ser humano, eu sabia lidar com 10 decisões por dia e é mais coerente do que quando foi ganhar Roland Garros, que tinha que tomar 500 decisões por dia. Vou errar muito mais mesmo tendo o mundo de oportunidades na minha frente.

Ninguém nasce campeão, não existe. “É talentoso, o cara é um gênio”. São 50 mil horas de trabalho para chegar a algum lugar e uns, aparentemente, jogam mais bonito, outros se esforçam mais, e é isso que faz o espírito campeão.

O Brasil é um triturador de ídolos. Fala-se mal do Pelé e até do Ayrton Senna, mas nos Jogos Olímpicos você fez muita gente chorar ao entrar com a tocha. Como você se enxerga como um dos poucos ídolos intocáveis?

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É que eu tenho uma legião de proteção (risos). A vida sempre foi muito generosa comigo. (Guga se emociona) As peças de alguma forma elas se encaixam e as pessoas são suficientes para gente viver, se emocionar, sorrir, chorar, eu só não consigo imaginar o isolamento, o estar sozinho, ou distante disso que é a emoção da vida, essa energia de estar junto, contribuir e fazer algo.

Vivemos num país polarizado, disputas de opinião e até brigas. Tem como o brasileiro ser um pouco mais humano?

Vejo que é um efeito mundial de divisão, de segregação que acontece também no Brasil, numa escala um pouco mais ampla, que vai essa amplitude de informação com uma maior quantidade de categorias. Quando você vai querer chegar a explicações, definições e palavras que significam algo também começam a ter separações. Por isso que volto para o canal do sentimento, quanto mais tudo isso valer menos e a gente ver que todos nós somos seres humanos, no frigir dos ovos é tudo igual, cara.

Precisamos passar por isso e atravessar situações mais doídas que eu vejo, que são essas de intolerância. Hoje falar alguma coisa? É melhor não falar nada, porque todo mundo está querendo mostrar ou defender algo, que seja um ponto de vista.

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O cara tá certo ou errado, vamos um pouco mais além e nos permitir mais. A internet hoje é uma fonte de desabafo gigantesca, se o cara pensar 30 segundos talvez minimize muito a potência.

E tem algo que possa melhorar?

Quem sabe a gente diferenciar um pouco também nessas horas as pessoas que têm mais alcance, diferenciar a pessoa física da jurídica. O cara que tem 1 milhão ou 5 milhões de seguidores com a opinião dele é bacana, legal, mas o jeito que ele influencia aí é diferente. Isso que ocasiona também alguns questionamentos e brigas que não são de um contexto coletivo, mas é pessoal. Mas tá na internet, já virou do mundo e uma batalha que não vale a pena.

E ao mesmo tempo tem coisas que são fundamentais, direitos e conquistas que acontecem de raças, de gêneros de diversas situações que precisam avançar. Essa balança e o efeito da internet que a gente não sabe lidar, nós precisamos aprender, suportar e passar por isso e fazer melhor. E vai ser melhor, né? (Risos). Difícil ser pior do que hoje, que está explodindo para tudo quanto é lado.

Como os teus filhos te veem e como você se vê como pai?

Eu gosto de falar o que é mais fácil perguntar para o Luis Felipe, para a Maria Augusta e para a minha esposa, é a forma mais sincera de responder. Gosto de ser muito sincero com eles, brincar. Ao longo desses sete anos com a Maria Augusta, que está nos acompanhando, a mais velha, são diversas mudanças. Acho que a convicção é importante nas nossas vidas, eu tava convicto que estava fazendo o melhor, e hoje também estou, mas fazendo bem diferente e o contrário do que era anos atrás.

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Escutando bastante, muito atento a cada momento, objetivamente o desafio é tirar um pouco a presença do celular, da mecânica da informação e diminuir essa interferência para ter uma vivência mais agradável, para ter um ponto de equilíbrio certo.

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