A guerra na Faixa de Gaza remexeu a memória do catarinense Antonio Marcos Koneski, 79 anos. O frei menor da Ordem dos Franciscanos viveu quatro anos em Israel e enfrentou um episódio bem representativo das disputas entre israelenses e palestinos. Em 2002, foi um dos religiosos retidos no Cerco à Basílica da Natividade.
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Por 39 dias, Koneski ficou trancado nos muros de pedra que protegem o lugar onde para os católicos estava a manjedoura, lugar onde teria nascido o menino Jesus. Foi uma ofensiva de Israel contra a Cisjordânia sob alegação de erradicar militares palestinos responsáveis por ataques contra civis.
O religioso enfrentou uma quarentena de escuridão, frio e fome. Enquanto o prédio sagrado ficava sem luz, água e telefone como tentativa de intimidar os atiradores palestinos, 12 padres, cinco sacristães, 12 estudantes de filosofia e quatro irmãs conviviam sob a mira das armas apontadas do lado externo. A tensão era tanta que todos iam para a cama vestidos. Prontos para qualquer eventualidade.
Com o fim do cerco e retorno ao Brasil, Koneski deu entrevistas para a imprensa nacional. Em Florianópolis foi recepcionado pelo então governador Esperidião Amin. Estimulado pelos companheiros, narrou a experiência em um dos capítulos do livro Vida Franciscana:
“As paredes de pedra tinham mais de um metro de espessura. Havia só um janela que dava para um poço de ventilação, por onde podia-se ouvir o movimento da rua…Não devíamos acender a luz nem falar em voz alta para não sermos descobertos pelos palestinos dentro do Convento nem pelos israelitas na parte externa”_escreveu.
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A ansiedade acumulada nas 936 horas em que esteve refém devolveu ao frei algo que acreditava ter se livrado: o hábito de fumar. Até hoje evita o cigarro, mas não abre mão do cachimbo.
A inquietação de estar em lugar que tanto quanto a vida precisava ser preservado, o despertou para o desapego. Todas as semanas ele está no Centro Histórico de Florianópolis na Feira Viva a Cidade, onde em uma das bancas vende objetos de antiguidade que acumulou, como imagens de santos, bíblias, livros e castiçais.
Nascido na Rua Conselheiro Mafra, tradicional reduto do comércio árabe em Florianópolis, o frei está ligado à Paróquia da Imaculada Conceição, na Lagoa da Conceição. É na “Igrejinha da Lagoa”, que teve a construção concluída em 1780 e se incorpora ao conjunto paisagístico formado pelo mar, dunas e montanhas da região leste da Ilha de Santa Catarina, que o frade celebra suas missas. À noite, de volta ao Norte da Ilha onde mora às margens da SC-303, acompanha pela TV o noticiário sobre a situação na Faixa de Gaza. Com certo ceticismo.
_É uma guerra seguida de outra. Existem períodos de tréguas, mas não a paz definitiva.
Igreja da natividade. Foto: MUSA AL-SHAER/AFP
O CERCO
O chamado Cerco à Basílica da Natividade ocorreu entre abril e maio de 2002 e durou 39 dias. Os cristãos espalhados pelo mundo acompanharam o episódio com muita atenção. Na época, o papa da Igreja Católica era João Paulo II, e um enviado especial seguiu para a região. O lugar é considerado sagrado e conforme os católicos foi ali que Jesus Cristo nasceu. A Basílica da Natividade pertence a três comunidades formadas por armenos, grego-ortodoxos e católicos romanos. O cardeal entrou em contato com o líder da Autoridade Palestiniana da época, Yasser Arafat, e com o presidente de Israel, Moshé Katzav. Para o fim do conflito contribuiu ainda a mediação da União Europeia e dos Estados Unidos. Durante esse período, 130 pessoas _ incluindo policiais palestinos, religiosos e ativistas internacionais _ permaneceram fechados dentro dos muros do templo construído no século IV. O impasse começou em 2 de abril depois do enfrentamento entre tropas israelenses e atiradores palestinos na Praça da Manjedouras, a maior de Belém, onde ocorrem as celebrações cristãs. Na época, Israel estava em ofensiva contra a Cisjordânia e alegava erradicar militares palestinos responsáveis por ataques contra civis. Em busca de abrigo, 30 homens armados invadiram um monastério franciscano. Cerca de 170 palestinos, policiais e civis , os seguiram e ficaram isolados junto com freiras e padres que estavam no local. Veículos blindados e atiradores de elite fizeram o cerco. Quem ficou dentro do muro de pedra enfrentou frio, fome e medo. Mesmo assim, alguns responderam que preferiam ficar. Cinco palestinos armados foram mortos por atiradores israelenses. Isso teria colaborado para a rendição que ocorreu por grupos. Em 7 de maio daquele ano foi anunciado que os palestinos considerados terroristas por Israel seriam enviados ao exílio e outros militares transferidos para a Faixa de Gaza.
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Frei Antônio Marcos Koneski. Foto: Charles Guerra / Agência RBS
“O absurdo é que a gente vai se acostumando”
Diário Catarinense _ O senhor morou quatro anos em Israel (cidades de Jafa e Belém) e enfrentou períodos de tensão, como o Cerco à Basílica da Natividade, em Belém. Como foi a experiência?
Antonio Marcos Koneski _ A tensão ocorreu de forma gradual, a qual começou com tiros ao longe e foi se intensificando até chegar próxima com tiros saindo de metralhadoras e carros armados que chegaram para destruir ruas, casas, veículos
DC _ O senhor deve ter se assustado com o cenário.
Frei Koneski _ O que mais me chamou a atenção na manhã seguinte a minha chegada foi o silêncio dos meus companheiros de convento. Ninguém comentava nada, como se fosse normal aquela rotina de tiros durante a noite. Diziam não haver perigo, e que bastava apagar a luz e manter a persiana abaixada.
DC _ E agora, o que o senhor sente quando vê a região envolvida em uma guerra tão intensa?
Frei Koneski _ Não me surpreendo. Aquela não é uma guerra política, mas histórica. Estamos diante de um impasse que começou pelo menos 800 anos antes de Cristo.
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DC _O que o senhor acredita que precisa ser feito para aquela região viver em paz?
Frei Koneski _ Não vejo essa possiblidade, infelizmente.
DC _ Mas a cada hora morrem mais civis, entre esses muitas crianças…
Frei Koneski _ Sim, mas não é só lá que neste momento estão morrendo pessoas. É assim na África, na Ucrânia, em diferentes parte do mundo. Vivemos em um mundo de muita opressão e isso está espalhado por todos os cantos.
DC _ O senhor entende que a Igreja Católica está agindo com coerência diante do conflito?
Frei Koneski _ Entendo que a Igreja não deva tomar partido, pois temos israelenses católicos e palestinos católicos. Neste caso, ficar de um lado significa ficar contra o outro.
DC _ Durante o cerco, o Papa João Paulo II enviou um cardeal para a região. Já o Papa Francisco tem reiterado pedidos para o cessar fogo. Alguma diferença de comportamento?
Frei Koneski _ O Papa Francisco não é um político, mas um pacifista.
DC _ O que de bom o senhor guarda do período em que morou em Israel?
Frei Koneski _ Sou muito grato a Deus por ter me dado a oportunidade de me experimentar sacerdote católico em um lugar onde arrisquei a minha vida para isso. Durante o cerco houve um dia em que nos foi perguntado sobre querer ficar ou sair, e eu preferi permanecer mesmo com todos os riscos. Além disso, tive a graça de celebrar diversas vezes com o papa João Paulo II, inclusive a Missa do Cenáculo (quando o próprio Jesus Cristo instituiu a Eucaristia e o Sacerdócio) quando ele esteve visitando a Terra Santa, em março de 2000.
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DC _ Deve ter enfrentado momentos de tristeza também, certo?
Frei Koneski _Lembro do cadáver de um palestino sendo arrastado preso em um carro pelas ruas da cidade, acusado de ser um espião. Tem também os tiros durante a noite e por fim a ocupação. O absurdo é que a gente vai acostumando.