Ninguém conheceu a história recente de Joinville melhor do que Jutta Hagemann, não importa o quanto tenha pesquisado a respeito dos fatos que ocorreram desde a colonização da cidade. Além de estudar o passado, Jutta viveu a cidade em que nasceu de verdade. Sua morte nesta quinta-feira, 13 de dezembro, aos 92 anos, poderia fazer desaparecer um pedaço importante das memórias da maior cidade de Santa Catarina, se ela não tivesse compartilhado de bom grado cada detalhe de suas lembranças com todas as pessoas que a procuraram nas últimas décadas para pedir ajuda em pesquisas e depoimentos.
Continua depois da publicidade
Jutta nasceu em junho de 1926, mas sua memória viajava para muito antes sempre que quisesse: com a mãe, Gerda, nascida em 1901 em Joinville, ela aprendeu histórias dos antepassados e como guardar essas lembranças em documentos, fotos e objetos. Além disso, a história de Joinville estava entrelaçada com a de sua família, já que, como dona Gerda comentava com ela, “naquele tempo todo mundo em Joinville era parente entre si”.
Jutta podia dizer com segurança como foi a criação da Cervejaria Tiede e a construção do que atualmente é o prédio da Cidadela Cultural Antarctica porque seu tio-bisavô foi o empresário responsável pelo empreendimento. Ela era tataraneta do advogado Johann Adolph Haltenhoff, que foi eleito primeiro superintendente de Joinville, assim que a cidade deixou de ser vila, em 1868. A poltrona que ele usava na época permaneceu preservada e ficou guardada na sala de estar de dona Jutta.
Ela ainda podia contar sobre a chegada da energia elétrica em Joinville porque seu avô a havia relatado; e saber quais eram as impressões dos joinvilenses enquanto o Moinho Joinville era construído, entre 1910 e 1913, porque seu pai ia observar a estrutura ser erguida diante do rio Cachoeira. Ela mesma aproveitaria, na infância, quando os adultos não estavam olhando, para descer pelos dutos dos silos de trigo como se fossem escorregadores depois que estes eram desligados, no fim da tarde, conforme contou, aos risos, ao jornal A Notícia em 2013.
Moradora de uma "Joinville de ontem" que causa nostalgia mesmo em quem não a viveu, Jutta cresceu no centro da cidade, brincando livremente pelas ruas de terra, e viu a cidade crescer. Ela viveu seus primeiros anos em uma casa na rua Ministro Calógeras com os pais, Gerda e Conrado, e os irmãos, Curt e Margot.
Continua depois da publicidade
Foi na rua Ministro Calógeras que, um dia, o maestro austríaco Pepi Prantl a viu, ainda menina, correndo entre as árvores e as flores e compôs Brincando com Flores, que integra a coleção de peças A Casa do Morro. Muitas décadas mais tarde, ela mesma ajudaria a resgatar estas e outras partituras, assim como o histórico dos artistas joinvilenses que as criaram. De lá, viu o Zeppelin alemão passar nos céus de Joinville em 1934, em um anúncio da Segunda Guerra Mundial que iniciaria em 1939 e faria com que, com a Campanha de Nacionalização, a família passasse boa parte daqueles cinco anos sem sair muito de casa por medo de represálias contra os descendentes de alemães, como contou à historiadora Janine Gomes em 2002.
Ela foi aluna da Escola de Educação Básica Conselheiro Mafra e, depois, terminou sua formação com o curso de contabilidade do Colégio Bom Jesus. Já moça, sabia como era difícil viver o conservadorismo dos anos 1940 ao precisar atravessar a rua Jerônimo Coelho, no Centro, para não passar em frente ao café do hotel e ficar “mal falada”.
— Diziam que as moças que queriam "se aparecer" para os homens é que passavam pela frente da porta do café — recordava ela.
Em compensação, viveu momentos felizes dos bailes de Carnaval da Sociedade Harmonia-Lyra — foi aluna de Liselott Trinks, a primeira professora de dança de Joinville — e dos festejos do centenário de Joinville, em 1951. Após se casar, chegou a morar por cinco anos no Rio de Janeiro.
Continua depois da publicidade
Ao retornar para Joinville, já divorciada, trabalhou como secretária nas empresas Ambalit, Tupy e Buschle & Lepper — nesta última, ela se aposentou e ainda passou mais alguns anos na organização do acervo da biblioteca.
— O que eu acho mais bonito é que ela foi mesmo uma mulher de vanguarda. Ela voltou do Rio só com as filhas, enfrentando uma separação nos anos 1960, e sempre trabalhou fora. Mesmo em uma época tão conservadora, ela enfrentou tudo e foi para o mercado de trabalho — conta uma das netas, Roberta Noroschy.
Roberta lembra que, durante sua infância, seus colegas de escola iam à casa de dona Jutta para pedir ajuda para os trabalhos escolares. Mais tarde, ela tornou-se referência para acadêmicos e jornalistas.
— Além de conhecer a história oficial, ela trazia histórias de vida, do dia a dia, que não estavam escritas em lugar nenhum até então, e, com isso, foi de fundamental importância para os jornalistas, historiadores e pesquisadores em geral, sempre com muita generosidade e disposição. Sem dúvidas, sua partida deixa um grande vazio — afirma a jornalista e escritora Maria Cristina Dias
Continua depois da publicidade
Entre as contribuições de dona Jutta à cidade estão doações de objetos ao Museu Nacional de Imigração e Colonização; e a doação de cartas de Ottokar Doerffel, um dos primeiros imigrantes da Colônia Dona Francisco, aos familiares que ficaram na Saxônia. Nestas cartas, há relatos importantes da geografia da cidade no século 19, do modo de vida dos imigrantes e das decisões políticas da comunidade que deu origem à Joinville.
Fonte importante do jornal A Notícia
Leitora do jornal "A Notícia" desde os anos 1930, ela colaborou com o veículo em inúmeras situações. Em 2006, quando o quadro Memória foi criado e trazia o desafio de fazer o leitor adivinhar de onde eram os imóveis e cenários publicados em imagens em cada edição, era difícil passar um dia sem dona Jutta participar.
— A dona Jutta era a nossa enciclopédia sobre história de Joinville. Eram raros os cenários do passado que ela não conhecesse. Ela não gostava nem um pouco que saísse alguma informação errada, e sempre vinha um puxão de orelha para corrigirmos. Se fosse da minha alçada, sugeriria uma pequena mudança na nomenclatura do Arquivo Histórico de Joinville: ele passaria a ser Arquivo Histórico de Joinville Jutta Hagemann — comentou o editor assistente Aldo Brasil, responsável pelo quadro Memória.
Em 2013, quando o jornal A Notícia completou 90 anos, dona Jutta foi a "garota-propaganda" do aniversário, aparecendo nos comerciais de TV e materiais publicitários. Ela também recebeu uma placa agradecendo sua contribuição ao jornal no evento de aniversário. Em 2015, recebeu uma homenagem da Câmara de Vereadores por sua contribuição à memória da cidade.
Continua depois da publicidade