Nuvens cinzas dominam o céu do bairro Azenha e uma chuva fina persiste quando o carro prata passa devagar pelos arcos da entrada do que ainda resta do Estádio Olímpico. O vidro desce e surge o rosto rechonchudo e sorridente de um dos mais carismáticos ídolos do Grêmio: Iúra. O bigode espesso está branquinho. O cabelo, também. Aos 65 anos, o ex-jogador mostra-se com muita energia. Ainda mais quando é para falar do gol mais rápido em Gre-Nais, marcado por ele 40 anos atrás, num 14 de agosto.
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— Podemos falar durante três horas sobre o gol. Faz bem, dá orgulho. Quarenta anos? Parece que foi ontem. Vamos conversar, sim, mas só não me coloca pra correr, aí maltrata o velho — brinca, ao ver que a reportagem tinha levado uma bola debaixo do braço.
14 segundos: o gol mágico de Iúra
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— Seu Iúra, a casa está aberta para o senhor — disse um deles, apontando para um dos portões de entrada do antigo estádio do Grêmio.
O ex-meia então estica o olho para o gramado do Olímpico. Tudo está bem diferente. Ao deparar com aquele grande esqueleto de cimento prestes a quebrar, Iúra suspira:
— Dá uma tristeza, um aperto ver o Olímpico assim, sem rumo, abandonado. Mas prefiro recordar das coisas boas que vivi aqui. O gol dos 14 segundos é uma das recordações que nunca vão se apagar.
O lance mágico do clássico 233 bate fundo no ex-camisa número 8, jogador magrinho — quando veio da várzea para o Grêmio tinha apenas 58 quilos —, guerreiro e de língua afiada. Lembra que o técnico Telê Santana, técnico gremista na vitoriosa campanha de 1977, dedicava horas nos treinos trabalhando jogadas ensaiadas. A jogada de saída de bola do centro era uma delas. Depois de três ou quatro toques, a bola parava nos pés de Tadeu Ricci ou Éder, que tinham a missão de cruzar para a entrada de Tarciso em velocidade da direita para o centro da área.
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— Era o meu domingo aquele, né? Eu estava de metido na jogada. Era para ser o Tarciso, mas como ele não correu, eu fui. E me dei bem. Foi só encobrir o Manga e sair para o abraço — festeja o Passarinho, abrindo os braços, recordando o gesto que fez naquele domingo, 14 segundos depois de o árbitro Agomar Martins soar o apito.
Tarciso, o Flecha Negra, hoje vereador de Porto Alegre, confirma a versão do colega:
— O seu Telê treinava demais essa jogada. Às vezes dava certo, outras não. Neste dia fomos iluminados. Eu não acompanhei o lance como deveria, mas o Passarinho voou no meu lugar e marcou. Muita gente nem viu o gol, estava se ajeitando na arquibancada.

A rapidez da jogada pegou até os profissionais de TV de surpresa. Imagens no YouTube mostram o gol apenas do meio para o fim — nas páginas a seguir, Zero Hora reconstitui o gol em infográfico. Foram seis passes, sem que os jogadores do Inter tocassem na bola. Participaram diretamente do lance André, Tadeu Ricci, Ladinho, Éder, novamente André (que faz um corta-luz) e Iúra.
— Era um gol improvável, ainda mais sendo um clássico, onde a concentração era grande desde os primeiros minutos. Foi o gol da audácia, da coragem, da libertação — afirma Tarciso.
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O ponteiro ressalva a relevância daquele gol e a vitória de 2 a 1, que deu o título do primeiro turno ao time tricolor.
— O Inter tinha um grupo poderoso. Eu estava cansado de perder clássicos, exausto na verdade. Mas quando vi aquela bola entrar, aos 14 segundos, tive a certeza de que era a hora da virada. A partir dali, do gol do Iúra, as vacas do lado azul começaram a engordar — brinca Tarciso, 66 anos.
O gol mais rápido da história em Gre-Nais
— O Inter era tão bom que chegava a ser arrogante em muitas vezes. O time estava em uma onda de superioridade. Usavam até perfume nas camisetas. Nós, ao contrário. Sabíamos que precisávamos ser humildes para vencer — afirma Tadeu, 71 anos, que mora em Ribeirão Preto (SP).
Batista, um dos craques do meio-campo do Inter naquela partida, rebobina a memória 40 anos e destaca que o gol-relâmpago atrapalhou todo o planejamento traçado para o jogo. O volante, hoje comentarista do SporTV, é um dos jogadores do Inter que tentam roubar a bola antes de ela chegar a Iúra — os zagueiros Gardel e Beliato também foram envolvidos pelos atacantes do Grêmio.
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— O Grêmio formou um ótimo time naquele ano. Queriam o título de qualquer maneira. Vieram babando para cima de nós — salienta Batista, 65 anos.
Vale destacar que, além do gol fulminante de Iúra, o clássico foi marcado por uma briga generalizada depois de uma solada de Éder em Batista. Sobraram socos e pontapés.
— O Iúra não era fácil em campo, todos sabem disso. Dentro de campo o negócio pegava. Mas depois que paramos de jogar, viramos bons amigos — ameniza Batista.
Iúra fazia uma dupla colérica com André Catimba, outro que não levava desaforo para casa. O atacante baiano era brabo. Mas também muito talentoso. Ele chegou ao Grêmio já rodado, aos 31 anos, e foi fundamental na campanha do título — marcou o gol decisivo e, ao comemorar, não conseguiu completar a cambalhota e saiu de campo lesionado.
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— O gol do Iúra tem participação genial minha, escreve aí. Enganei o zagueiro com corta luz e deixei ele na tranquilidade. Ainda sonho com este gol e aquele da final. Que ano aquele de 1977, um grupo equilibrado. E tinha o Telê, né, um professor graduado de futebol — elogia André, 71 anos, que hoje curte a aposentadoria em Salvador.
Outro grande nome do Inter presente no confronto no clássico 233, Valdomiro realça a importância de um time ter jogadas ensaiadas, o que se vê pouco nas equipes brasileiras hoje.
— Mérito para o técnico e para os jogadores do Grêmio na época. Trabalharam e foram premiados com um gol que está na história — elogia o ex-ponteiro Valdomiro, 71 anos.
Assim como Valdomiro, que precisou provar seu valor ao torcedor colorado, Iúra também percorreu um longo caminho até ganhar a confiança da torcida do Grêmio. Por ter um temperamento forte, bateu de frente com aqueles que o criticavam. Se fosse xingado, devolvia na mesma moeda.
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— Mandava longe, não tinha papa na língua. Muitos me odiavam. Outros gostavam deste meu jeito. Hoje, sou respeitado por onde passo — diz o ex-jogador, que atualmente se divide entre sua indústria de produtos dentários e a coordenação da categoria de futebol feminino do clube.
Iúra fez mais amigos do que inimigos. Gostava de festejar com eles os bons momentos. Após o gol dos 14 segundos e da vitória de 2 a 1 sobre no clássico, o meia reuniu uma patota da pesada para comemorar. Na lista de convidados, Éder, André Catimba e Loivo.
— Fomos para o Bar do Lupi, na Cristovão Colombo. Muita comida, música boa, gargalhadas e cerveja gelada. Até a madrugada. Seu Telê soube da festa, óbvio, mas estava tudo liberado — diverte-se Iúra.
Enquanto vasculha a memória no rastro de mais detalhes sobre o “o gol quarentão”, Iúra é convidado pela reportagem a se aproximar do local em que chutou e venceu o goleiro Manga. O andar é lento.
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A chuva aperta e molha o gramado alto e cravejado de inço do Olímpico. Não há goleira, não há marcação de área, não há adversário, não há o rumor da torcida. Há sim um coração acelerado. O gol de 14 segundos é muito mais do que um recorde ou uma estatística. É a história de uma vida.

