Quando Anthony, cinco meses, deu sinais de que estava a caminho, muitas chaves precisaram ser viradas na vida de Maria Eugênia Góes Ferreira, 33 anos. Mãe de uma adolescente de 15 anos, ela e o companheiro Dejair de Oliveira Júnior, 44, pai de uma moça de 22 anos, pensavam em ter um filho fruto da união do casal. Mas não planejavam que fosse durante uma pandemia que colocou o mundo de joelhos.
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Além de alastrar por todos os continentes, o coronavírus matou 6 milhões de pessoas, sendo 656 mil brasileiros. Somente em Santa Catarina são 22 mil vidas interrompidas.
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– O Anthony é nossa alegria, uma bênção, não nos arrependemos de tê-lo. Mas foi um período de incertezas, de insegurança e de novas descobertas – contam os pais.
A família de Anthony é uma das milhares que a pandemia incidiu. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pelo menos 97 mil bebês foram registrados em 2020 no Estado. Os números do ano passado não saíram, mas é possível afirmar que adaptações e reinvenções seguem exigidas.
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De acordo com especialistas, a chamada “geração pandemia” foi ceifada naquilo de mais valioso: o contato com o mundo, essencial para o desenvolvimento dos bebês. O convívio ficou restrito aos pais, a interação com parentes feita por redes sociais, a visita dos padrinhos e o colo das vovós adiados. Por sorte, ainda que em curso, a pandemia passou a ser controlada a partir do surgimento das vacinas.
Em outubro, enquanto Anthony nascia rodeado de cuidados e de carinhos, uma audiência pública da Comissão Externa na Câmara Federal discutia as Políticas para a Primeira Infância no Brasil. Apesar de estarem entre as pessoas menos afetadas pelo coronavírus, no que diz respeito aos casos graves e à mortalidade, as crianças de zero a seis anos também foram profundamente impactadas, em diversas áreas. Diretor de políticas e direitos das crianças do Instituto Alana, Pedro Hartung afirmava que decisões políticas tomadas durante a pandemia alcançaram as crianças.
No Brasil, houve 10 vezes mais mortes de bebês por Covid-19 do que nos Estados Unidos. Também ressaltava que, até ali, mais de 12 mil crianças brasileiras ficaram órfãs por causa da pandemia. Outro alerta foi o agravamento da insegurança alimentar e da fome nas famílias, com sequelas no desenvolvimento infantil:
– A gente sabe que o desemprego cresceu, principalmente entre mulheres. Além disso, houve a sobrecarga de tarefas domésticas para as mães que mantiveram seus empregos e puderam ficar em home office. Por isso que a gente tem de falar que cuidar de crianças no Brasil é cuidar especialmente de mulheres mães – destacou em entrevista à Agência Câmara de Notícias.
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Oficial de desenvolvimento da primeira infância do Unicef, Maíra Souza contou que a entidade realizou, em parceria com o Ibope e o Instituto de Pesquisas Cananeia (Ipec), três rodadas de pesquisas sobre os impactos da pandemia sobre a infância. Entre os resultados, 63% da população entrevistada entre os que residem com crianças ou adolescentes de zero a 17 anos tiveram decréscimo da renda familiar durante a crise sanitária; 6% mencionaram que deixaram de comer porque não havia dinheiro para comprar mais comida.
– A primeira infância é uma população imensa, de mais de 20,6 milhões de crianças, e temos diversas evidências que mostram que a pandemia de Covid-19 teve repercussões a curto e longo prazo no bem-estar e no desenvolvimento das crianças desde a gestação. Houve interrupção dos serviços, como na educação infantil, como na saúde materna, que acabaram colocando a vida das crianças em risco.

“Gerar um filho na pandemia é desafiador”, diz mãe
Virada a chave do filho não planejado, Maria Eugênia e Dejair tiveram que fazer outros movimentos. Foram múltiplos desafios.
– Gestar uma criança durante uma pandemia com todas as restrições sanitárias e sociais impostas – inclusive para o bem do bebê – é assustador, é algo que exige mais da gente, bem mais do que uma gestação onde se pode andar nas ruas, estar com as pessoas, fazer o acompanhamento médico de forma presencial, viver livremente a gestação – explica Maria Eugênia.
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Meses depois de a OMS declarar o mundo em pandemia, conta, ela perdeu o emprego. Para ajudar na renda da família, decidiu fazer cestas decorativas: foi um sucesso, mas acostumada a trabalhar e ter sua independência, Maria Eugênia quis voltar ao mercado. Recebeu convite para novo emprego e em seguida uma promoção. Com um detalhe: a empresa precisava muito do talento e da força de trabalho. Em meio a isso, descobre-se grávida:
– Levei 15 dias para falar, por sorte pude contar com um RH muito atento e duas horas depois migrava para o home office. Na época, ainda não tinha tomado vacina e minha cabeça não parava de pensar no bebê que eu gerava e em todo o resto – recorda a mamãe.
Dejair, que atua na área da saúde estava vacinado e seguia trabalhando no presencial. Com respeito a mulher, ele conta que segurou a informação preciosa dos pais:
– Eu estava louco para contar que eles seriam novamente avós, mas fizemos um pacto que só depois que ela contasse no novo emprego. Depois sim, foi só alegria.
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Em casa, para deixar a futura mamãe mais serena, Dejair assumiu o fogão. Maria Eugênia e a filha Alícia, sem aulas, dividiam o mesmo espaço, e juntas se esforçavam para enfrentar aquela gravidez que se apresentava como uma experiência emocionalmente e fisicamente desgastante.
– Foi uma gravidez difícil. Eu tinha receio de sair de casa, de me infectar, de passar para o bebê, de que as pessoas ao meu redor se contaminassem. Fiquei muito sedentária, tinha dores nas costas, chorava muito, engordei tanto que subi quatro, cinco números do manequim. Precisei fazer terapia (virtual).
Tudo isso, recorda Maria Eugênia, fez com que a chegada de Anthony fosse praticamente como a primeira gestação. No pós-parto, também desafiador, ela contou com o suporte do marido e de uma irmã. Maria Eugênia já perdeu os pais e admite que carecia de uma mãe por perto:
– Minha mãe faleceu havia 12 anos. Mas revivi o luto de pensar nela, em sentir a ausência dela e de meu pai também falecido, em imaginar como seria bom tê-los próximos naquele momento. Nosso filho chegou saudável, por cesárea, e eu e o bebê estabelecemos uma conexão profunda.
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Agora, o momento é outro. No dia 25, Maria Eugênia retoma o trabalho de forma presencial. Nestes últimos dias ela fez algo que apertou-lhe o coração: começou a deixar Anthony no Centro de Educação Infantil, uma experiência dolorosa para quem nos últimos meses eram de um grude total.
– Estou segura com relação ao espaço, conheço o lugar, minha filha passou por lá e tenho um sobrinho que frequenta ali. Mas não deixa de ser difícil esse desapego. Anthony ainda mama.
Como Maria Eugênia trabalha distante, ela organizou a rotina introduzindo leite e para que o menino possa mamar à noite, quando ela está em casa.
– Eu vivia só para ele, e ele vivia só para mim. Agora chegou a hora desta rotina se alterar. O Anthony é nossa alegria, é uma bênção, uma tranquilidade. Mas não posso negar que ter um filho durante uma pandemia é algo desafiador para uma mulher, para uma família, é um estresse. E tudo isso aflorando hormônios por todos os lados – brinca, enquanto acaricia o rostinho do filho.
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“A educação infantil precisa reparar o tempo em que os bebês ficaram longe do convívio social”, diz especialista
Bebês nascidos após março de 2020, quando a pandemia é reconhecida, são chamadas de coronials, uma alusão aos millenials. Um estudo coordenado pela psicóloga e professora no curso de Pedagogia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Patrícia de Moraes Lima, aponta o impacto sobre estas crianças. Pós-doutora em Educação em Psicologia e responsável por uma disciplina que tratar dos processos educativos com bebês, Patrícia alerta sobre a necessidade de políticas públicas para o enfrentamento de uma realidade que deixou pendências:
– Os bebês são partícipes da sociedade. Nós adultos precisamos aprender a ler o que estão dizendo, justamente crianças que tiveram vínculos do processo de aprendizagem alterados. Muitos entendem que os bebês tiveram mais próximos da família, mas precisamos entender que os bebês são sujeitos de direito e na educação infantil (zero a cinco anos) exercitam a complementaridades de ações que os deixam mais seguros, independentes, autônomos.
A professora explica que no espaço da educação infantil os bebês interagem com os pares, assim como outras crianças maiores e adultos (educadores) que vão além da família e espaços físicos diferentes (salas, parquinhos):
– Tudo isso constrói a subjetividade desse ser, que ajuda na construção dos processos de desenvolvimento motor, físico. Por isso, os estudos mostram que o impacto da pandemia na vida dessas crianças é bastante grande e para além das condições sociais e emocionais dos familiares dessas crianças, levando-se em conta, ainda, as desigualdades que se acirraram em projetos fragilizados diante de uma gestação e de mesmo de um parto diante de um medo marcado por perdas, doenças, mortes de pessoas no entorno e das relações inclusive dessas crianças.
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Para a professora, esses aspectos inserem no desenvolvimento dessas crianças e exige atenção dos governos acerca das políticas públicas. Ela defende que não significa que as crianças, com ampla capacidade de resiliência, seguirão o resto da vida com dificuldades. Mas alerta:
– O pós-pandemia, ainda que a pandemia prossiga, precisa dar conta para que os bebês possam se desenvolver enquanto seres de direitos, e ainda dá tempo.
SC com menor queda percentual de nascimentos
– SC teve 97.973 nascimentos ocorridos e registrados em 2020, uma redução de 0,2% em relação a 2019, representando 155 nascidos vivos a menos
– Foi a menor redução entre as 27 unidades da federação
– No Brasil como um todo, houve queda de 4,7% no número de nascidos vivos entre 2019 e 2020
– SC teve uma queda do número de nascidos vivos em 2020 menor que em 2019 (-1,3%), que registrou 1.284 nascimentos a menos que em 2018
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– Em 2020, todas as unidades da federação tiveram queda no número de nascimentos. No ano anterior, três estados ainda registravam aumento
– Os estados com maior retração do número de nascidos vivos em 2020 foram o Amapá (-15,4%) e Roraima (-13,3%)
– A Região Sul (-3,0%) apresentou queda no número de nascimentos menor que a nacional (-4,7%)
– Março foi o mês com mais nascimentos
– 99,4% (97.386) dos 97.973 nascimentos ocorreram em um hospital
– Maioria dos nascidos vivos eram homens
– Santa Catarina teve o menor percentual de nascidos vivos em 2020 cujas mães tinham menos de 20 anos de idade (9,5%), representando 9.330 nascimentos
– Nacionalmente, o percentual de nascidos vivos com mães de menos de 20 anos foi de 13,4%, e com menos de 15 anos, de 0,5%, quase o dobro do catarinense
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– Um de cada quatro nascidos vivos tinha mães entre 25 e 29 anos de idade
Fonte: IBGE