O impasse sírio depois de quase três anos de guerra civil é uma das preocupações do libanês Yezid Sayigh. Além de ter publicado numerosos trabalhos sobre as relações entre forças armadas, organizações políticas e Estados árabes desde 2011, ele dedicou à Síria sua mais recente obra, O Problema da Liderança de Oposição na Síria (The Syrian Opposition’s Leadership Problem, 2013, inédito em português).
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No dia 13 de janeiro, Sayigh proferiu conferência na London School of Economics, em Londres, sobre o país governado por Bashar al-Assad. Uma semana depois, às vésperas do início da conferência Genebra 2, em Montreux (Suíça), ele falou por telefone a Zero Hora sobre as perspectivas do processo. A seguir, os principais trechos:
Zero Hora – A guerra na Síria tem sido definida de diferentes maneiras por especialistas. Para alguns, é uma forma particular de um fenômeno mais vasto, a Primavera Árabe. Para outros, é uma luta faccional semelhante à do Iraque. E há ainda os que dizem que é uma espécie de frente avançada de luta pelo regime iraniano. Assim, qual seria sua definição da guerra civil na Síria?
Yezid Sayigh – Eu diria que o conflito sírio é todas essas coisas. Todas as guerras civis são mais do que simplesmente uma guerra civil, ou mais do que uma guerra civil, uma revolução é mais do que uma revolução. Na minha opinião, os que dizem que se trata de uma dessas coisas e não outras estão simplesmente fazendo uma opção política e distribuindo rótulos. Na realidade, é uma guerra civil, é uma revolução, é uma rebelião, é uma contrarrevolução e é uma guerra externa. É todas essas coisas. Para mim, isso é natural e lógico.
ZH – Quais foram os principais eventos dessa guerra?
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Sayigh – Eu discordo dessa abordagem. Como eu disse, é um fenômeno multifacetado que envolve todas essas coisas e não apenas um evento isolado. As pessoas que insistem em reduzir um conflito complexo a apenas uma única faceta estão expressando uma posição política, o que não corresponde a meu propósito.
ZH – Existem diferenças fundamentais entre o regime de Hafez al-Assad, de 1970 a 2000, e o de seu filho, Bashar al-Assad, desde então?
Sayigh – Isso, evidentemente, é algo muito amplo, porque as diferenças e semelhanças dizem respeito às bases policiais do regime, às formas institucionais, alianças sociais, formas econômicas etc. Para sumariar isso muito rapidamente, eu diria que há fortes semelhanças. Obviamente, os dois estão à frente de um estado policial, cujo principal ponto de vista é o de que o regime deve sobreviver em segurança, e isso explica como as pessoas que o dirigem se comportam. Além disso, há importantes diferenças. No período de Bashar al-Assad, há uma grande mudança em matéria de política econômica. Essa mudança, em direção à privatização e liberalização da economia, levou a uma alteração nas alianças entre setores sociais. Os aliados de Al-Assad pai, que incluíam pequenos agricultores no interior, muitos deles sunitas, voltaram-se contra o regime nos últimos anos. Ao mesmo tempo, uma grande parte da classe média sunita das cidades, que historicamente era hostil ao partido Baath e às forças armadas de Al-Assad e particularmente à comunidade alauíta, beneficiou-se do novo sistema e, em certo sentido, tornou-se parte dele.
ZH – Qual era a situação política interna da Síria imediatamente antes do início da revolução? Qual era o estado da oposição?
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Sayigh – O regime sírio, tanto sob o pai como sob o filho, conseguiu em grande medida em erradicar completamente a oposição organizada. Poucos partidos estavam operando legalmente. Havia limitações à liberdade de atividades políticas nas universidades, no exército (onde não eram permitidas) e em outras partes do país fora da capital. Mas, em outras partes que interessavam particularmente ao regime, não havia nenhuma liberdade de operação. O mesmo ocorria nos sindicatos e associações de trabalhadores. O regime evitou o surgimento de qualquer forma de organização social ou política autônoma no país. No momento em que o levante começou, não havia basicamente nenhum movimento social ou política no interior do país que tivesse estrutura, experiência ou capacidade para conduzir ações políticas e militares massivas. É por isso que, acredito, a oposição teve tanta dificuldade de atuar naquele momento.
ZH – Como o senhor definiria os laços entre o regime sírio e o Irã?
Sayigh – A principal base dessa relação é política e estratégica. Para o Irã, é importante ter aliados árabes defensáveis. Isso serve para contrarrestar o argumento de alguns países árabes, como Arábia Saudita, Egito e Jordânia, de que o Irã é inimigo dos árabes e assim mostrar um forte compromisso com causas árabes como o enfrentamento com Israel e com a política americana. A Síria é importante para mostrar que o Irã mantém uma longa e verdadeira relação com um país árabe. Se o Irã puder consolidar essa relação por meio do desenvolvimento de laços religiosos com os xiitas sírios, ele fará isso, mas esse não é realmente seu objetivo fundamental. Para o regime sírio, por outro lado, é importante ter apoio econômico, tecnológico e militar do Irã. Os sírios também quiseram no passado contrabalançar a influência do regime de Saddam Hussein, no Iraque, ou da Turquia, e a relação com o Irã lhes permitiu fazer isso. Para todos, o aspecto religioso não é importante ou é estrategicamente secundário. Embora neste momento a resposta iraniana ao conflito armado talvez possa incrementar o papel do voluntariado xiita, a realidade é que o papel desse fenômeno está ligado às alianças políticas do Irã e não apenas à identidade religiosa. O papel dos voluntários xiitas do Iraque ou de outros lugares é exagerado, na minha opinião. É uma faceta do contexto, mas não a faceta central.
ZH – O que mudou na abordagem da Rússia em relação à Síria desde os tempos da União Soviética?
Sayigh – Com o fim da União Soviética, a Rússia enfrentou uma série de problemas econômicos, social e políticos internos. A Rússia só começou a se estabilizar internamente de novo nos últimos 10 ou 15 anos. Por um longo período, a Rússia estava ocupada demais para fazer muita política externa, quanto mais política externa no Oriente Médio. Foi o período de seguir a liderança dos Estados Unidos, não confrontá-la. Em relação à Síria, a Rússia começou a exigir que fosse pago o dinheiro investido no país no período soviético. Não era uma relação muito especial. Mas, nas últimas décadas, os russos reconstruíram gradualmente seus laços, ofereceram novos negócios com armamentos e novos acordos econômicos. Nada disso é muito importante para a Rússia. O único motivo pelo qual os russos estão agora muito mais comprometidos com o apoio ao regime e com o enfrentamento da política americana é que acreditam que os EUA e outros aliados tornaram-se muito afoitos e agressivos no Oriente Médio e em outras regiões e estariam tentando marginalizar a Rússia e seus interesses. Isso tem a ver com os desacordos sobre a defesa antimísseis balísticos na Europa, com o Irã, com a Ásia Central, com o Golfo Pérsico. Para os russos, a Síria não é importante em si mesma. Mas, em razão do crescente desconforto entre EUA e Rússia e da intervenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na Líbia em 2011, que os russos entenderam como uma tentativa dos EUA e da Otan de fazer de uma revolução mais do que uma revolução, a Rússia se tornou mais assertiva em matéria de política externa na Síria. Estão usando a Síria como um pretexto para dizer: “Não queremos que vocês operem dessa maneira, queremos uma solução política, vocês não podem impor os seus próprios termos”. Mas acredito que os russos voltarão a sua antiga posição. Não há uma profunda aliança entre a Rússia e o regime sírio. Não acredito que eles realmente se importem com Al-Assad. Creio que entendem que Al-Assad cometeu muitos equívocos e deveria ter feito reformas e principalmente dividido o poder. Mas eles não querem que isso seja feito da maneira como os Estados Unidos definirem. Isso não é um retorno à política dos tempos da era soviética.
ZH – O que aconteceu em Ghouta, a sudeste de Damasco, em 21 de agosto de 2013?
Sayigh – Levando em conta os dados técnicos que temos, é quase certo que o regime tenha usado armas químicas de uma forma que levou às baixas civis que se viu. A única questão para a qual não temos resposta é se houve um ataque deliberado contra civis ou se o exército estava promovendo operações militares de larga escala com armas químicas e, por erro de cálculo ou de julgamento, acabou causando mortes de civis de maneira acidental e se colocou em uma situação complicada. É preciso saber se uma facção do regime tentou criar problemas para outra facção – o que também é possível. Não há informação suficiente para resolver essa questão. Não acredito que tenha havido uma deliberação do regime de provocar as mortes de civis nem que eles anteviam a possibilidade de criar tantos problemas para si.
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ZH – Como o senhor vê as conversações de paz chamadas de Genebra II, que começam esta semana em Montreux, na Suíça?
Sayigh – Genebra II não produzirá um acordo político sobre a transição. Não acredito que isso vá ocorrer tranquilamente. A questão é se o processo de Genebra permitirá a construção de medidas de confiança, como cessar-fogo, assistência humanitária e troca de prisioneiros, ou se começará assim e depois evoluirá para uma verdadeira negociação política. Até o momento, isso é muito nebuloso. Os Estados Unidos e a Rússia ainda não concordam o bastante sobre como deve ser a transição, o que deve ocorrer depois e onde se deve chegar. Eles concordaram em ter um processo de negociação, em construir medidas de confiança mútua, mas não concordaram sobre a substância política. Isso significa que o tempo vai passar, o regime continuará a se fortalecer a cada morte, a oposição já está em situação precária e a oportunidade pode ser perdida.
ZH – Quais são as chances de o conflito sírio se estender ao Líbano?
Sayigh – A situação no Líbano atingiu um nível perigoso nos últimos meses. O aumento de incêndios, ataques com mísseis e assassinatos aumentaram a um ponto em que se tornou quase inevitável que essa guerra não declarada continuará por algum tempo no Líbano. No caso da Síria, acredito que a situação não ficará melhor, e sim que ficará pior antes de ficar melhor. No Líbano, a situação também vai ficar pior. Isso deve-se em parte ao fato de que iranianos e sauditas estão apoiando lados diferentes e que a decisão deles de se enfrentar pode tornar a situação no Líbano fora de controle.
ZH – O senhor acredita que o confronto entre sauditas e iranianos é um fator chave da situação libanesa?
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Sayigh – Creio que é um fator importante, sim. Os libaneses estão politicamente divididos em relação à Síria – alguns simpatizam com a oposição, outros simpatizam com o regime. O que deve ser acrescentado é que cada campo é também aliado ao Irã ou à Arábia Saudita, militantes ou não. Não acredito que haverá uma guerra civil no Líbano porque a maioria dos libaneses não quer ser envolvidos em um grande conflito militar. Por isso, o conflito será limitado a operações clandestinas por agências de inteligência ou por organizações políticas armadas como os jihadistas, o Hezbollah, indivíduos ligados às inteligências saudita ou síria. A inteligência israelense aproveitará a oportunidade de atacar o Hezbollah. Esses diferentes tipos de organizações clandestinas ou agências de inteligência serão os principais atores engajados em bombardeios, ataques com foguetes e assassinatos. Mas não haverá guerra civil organizada.
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