Um sopro de ar interrompe o som limpo do fole. Maria Primaz de Paula se irrita com a desafinação da velha gaita. Insiste. Tira dela uma moda eternizada por Pena Branca – “As Mocinhas da Cidade” sai nos primeiros abrir e fechar de braços. Aos poucos, a voz esforçada entra no ritmo. Maria está na sala de estar, mas a lembrança que a toma no momento ressurge com casais riscando o chão com os pés nos bailes típicos do interior.
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A música vem fácil das mãos de Maria, mesmo no alto de seus 97 anos, mas não é rotineira. Precisa de um motivo especial para que ela saque um dos instrumentos de cordas e sopro que guarda em seu quarto e relembre a boa fase em que ela percorria o Rio Grande do Sul com a banda Sempre Viva, formada também pelo marido Olívio Barbacena de Paula (falecido há 22 anos) e por parentes e amigos.
Dona Maria é bem vivida. Passou por de tudo um pouco, enfrentou o trabalho duro na roça, perdeu filhos em abortos espontâneos, deu à luz tantos outros como parteira, viu o marido partir, os bisnetos nascerem. No entanto, foram as andanças que fez em razão da música que lhe renderam uma história remoída há meio século e redescoberta no ano passado por uma editora de Joinville, a Dialogar.
Como de costume, dona Maria Primaz viajava nos fins de semanas pelo Estado natal, Rio Grande do Sul. A banda Sempre Viva havia sido convidada para animar um baile na cidade de Santa Rosa. Seguiam de carro pela estrada de barro. Na época, ela tinha 45 anos e, além dos companheiros de banda, um motorista e sua esposa a acompanhavam. No trajeto, chamou a atenção de dona Maria uma casa em meio à paisagem. A esposa do motorista, que a tudo conhecia na região, percebeu o olhar atento da gaiteira e desatou a contar o que havia ocorrido por entre aquelas paredes anos antes.
– Eu achei tudo aquilo muito monstruoso e fiquei dias com aquela história martelando na minha cabeça – recorda.
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Tratava-se de uma tragédia familiar. A mãe matara o filho adotivo com dois tiros na cabeça, a sangue-frio. O motivo? Era esse desenrolar da conversa que dona Maria continuou ouvindo pelo caminho até o salão de baile. Era parecido com os romances que ela costumava ler, fragmentados, semanalmente, nos jornais. A assassina, já com três filhas, adotou um menino. Ele era mais moreno que o restante da família de alemães. O adotado tinha pouca diferença de idade da filha mais nova do casal, era xodó do pai e considerado muito educado. Cresceu sabendo de sua origem, revelada desde cedo a pedido da mãe biológica. Quando adolescente, começou a alimentar uma paixão pela irmã caçula. Os dois trabalhavam na roça e viviam juntos.
O relacionamento não passava despercebido pela família. Os irmãos faziam planos de casamento. Até enxoval já tinham providenciado. A mãe não aceitava a união. Não porque foram criados como irmãos, mas porque o filho não teria condições suficientes de dar boa vida à esposa. O desespero levou à pior alternativa. A mãe assassinou o adotado, mentiu para o marido e a filha até o crime ser finalmente descoberto.
Foi como dona Maria relatou a tragédia que ouviu há 52 anos. Se é bem assim que aconteceu, só os envolvidos saberão dizer. Misturados à criatividade, aos poucos a leitora assídua de romances foi passando para um caderno sua versão dos fatos.
– Imaginava como seriam as conversas entre eles – relata.
A escrita das 80 páginas foi um lento processo. Maria, já mãe da única filha, Janete, aos poucos acrescentava novas linhas à história que tanto a impressionou. Quando completou 75 anos, após uma longa gestação literária, tinha “O Filho Adotivo” em mãos. Apresentou para uma editora, uma velha conhecida, que a desanimou.
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– Ela falou que eu teria de pedir autorização da família para publicar – lembra.
O “filho” então adormeceu junto com fotos e documentos. Chegou a ser datilografado por Janete. Mas só agora, quase 20 anos depois, foi descoberto pela editora de Joinville, onde dona Maria mora com a filha e genro há 22 anos. A cópia única foi entregue por um dos netos de Maria, que, sabendo da história, comentou à editora Célia Biscaia Veiga.
– Levei para casa e não parei de ler até terminar. A cada página, eu queria saber mais sobre o que tinha acontecido – conta ela.