Às vezes, só ganhar não basta: há que se dar show. Alguns jogadores entram para a história exatamente por terem prioridades diferentes do comum.
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Garrincha: parado, já era um drible
Manuel Francisco dos Santos, o Garrincha, nasceu em uma família carente e numerosa do interior fluminense – tinha 15 irmãos. Além disso, uma má formação fazia com que sua perna direita fosse flexionada para dentro e sua perna esquerda, para fora. Vai, vai ser gauche, vai ser torto na vida, alguém não deve ter dito. De qualquer forma, rejeitado em vários clubes pelo seu perfil desequilibrado, Garrincha acabou indo treinar no Botafogo, enfrentado o grande Nilton Santos. Depois de sofrer uma janelinha do menino desengonçado, a Enciclopédia do Futebol encontrou poucas palavras para exigir a contratação de Garricha: “Melhor jogar com ele do que contra ele!”.
Começou aí a carreira do Anjo das Pernas Tortas, que de anjo não tinha nada. Mulherengo, descompromissado, irreverente, Mané encarava cada jogo como uma brincadeira, cada marcador _ fosse do Madureira ou da Seleção da União Soviética _ era mias um João que o Mané tirou para brincar.
A complexidade de um ser tão simples provocava tentativas de defini-lo. Carlos Drummond de Andrade: “Se há um Deus que regula o futebol, esse Deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios.”. Jô Soares: “Ele parado já era um drible.” Armando Nogueira: “O Pelé era um atleta e Garrincha um artista.”
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Garrincha foi um dos principais responsáveis pela vitória em 1958, mas foi no Chile, quatro anos depois, quando Pelé se lesionou e desfalcou o Brasil até o final do torneio, que o ponta tornou-se um deus. Dribles, cabeçadas, gols, assistências não bastavam, Garrincha teve de protagonizar um dois episódios mais engraçados daquela Copa. Um cachorrinho entrou em campo no jogo Brasil e Inglaterra e aplicou uma finta em Garrincha. Bem feito, devem ter pensado os jornalistas ingleses, que nas manchetes do dia seguinte se renderam ao talento de Mané chamando-o de “extraterreste”.
Garrincha ficou como um símbolo do futebol vitorioso do Brasil – ao lado de Pelé, nunca perdeu jogos da seleção, sozinho foi batido uma única vez, disputando 61 partidas com a camiseta canarinho. Morreu pobre, talvez sem ter consciência do quanto representou para o Brasil e para as Copas, investido simultaneamente dos papéis de alegre bufão e incontrolável talento.
Ele disse:
– Campeonatinho mixuruco, nem tem segundo turno! – se referindo à Copa de 1958
O louco escorpião colombiano
José René Higuita Buros Zapata na certidão. Higuita para os narradores. El Loco para torcedores. Higuita era tudo isso e mais: uma overdose de espetáculo, um goleiro que queria ser o protagonista. Apesar de ter participado de apenas uma etapa final de Copa do Mundo, a de 1990, o colombiano Higuita deixou sua marca como um imprevisível, inconsequente e talentoso jogador. A começar pela sua altura: qual a viabilidade de um goleiro de 1m75cm no futebol moderno? Higuita parecia tentar aparentar mais estatura turbinando seus cabelos caracolados, e se desdobrando no gol e na linha, tendo anotado mais de 40 gols em sua carreira.
Em 1990, jogo decisivo contra Camarões, El Loco quis sair jogando , dividiu uma bola com Roger Milla, que venceu a jogada e marcou o gol que desclassificou a Colômbia. Mas o cabeludo também é responsável por aquela que é considerada por muitos como a jogada mais extraordinária do futebol: a defesa “escorpião”.
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Foi durante um amistoso entre Inglaterra e Colômbia, em Wembley, 1995. O chute longo de Jamie Redknapp parecia que iria cair nas costas de um descuidado Higuita, mas este jogou-se para a frente e rebateu a bola com os calcanhares, no que foi identificado como o movimento de cauda de um escorpião. O colombiano, modesto, depois argumentou que tinha visto o bandeirinha assinalar alguma irregularidade, por isso ele tentou o lance acrobático. Emendou que o bandeirinha devia ter gostado tanto da jogada que abaixou seu instrumento de trabalho rapidinho.
O show fora do campo incluiu visita a um narcotraficante na cadeia, greve de fome na prisão, operações plásticas, participação em um reality show, agressões a jornalistas, mas Higuita segue como o símbolo do tal futebol moleque. Mas moleque mesmo.
Ele disse:
– Gols acontecem. Mas não devemos nos preocupar muito com isso.