*Por Constant Méheut
PARIS – O julgamento de janeiro foi excepcional para um país que vem resistindo à repatriação ou extradição de suspeitos de terrorismo de campos de batalha no Iraque e na Síria.
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Um juiz de Paris ouviu argumentos contra 24 homens e mulheres acusados de ligações com o grupo Estado Islâmico. Testemunhas foram chamadas. Promotores e advogados de defesa fizeram suas alegações. As sentenças foram proferidas.
Dezenove dos réus, porém, foram considerados mortos e julgados à revelia. A imprensa francesa chamou o caso de "julgamento fantasma".
Antoine Ory, um dos advogados de defesa, reconheceu isso: "Na França, em 2020, nos recusamos a repatriar os vivos, mas julgamos os mortos."
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O julgamento, que terminou com a condenação de todos, trouxe à tona um dos paradoxos da França para lidar com casos como esses.
O governo quer julgar suspeitos de terrorismo, na esperança de evitar que eles escapem pelas brechas da lei. Com isso, também tenta entender como as redes operavam, com o objetivo de reunir provas que possam ser usadas em futuros julgamentos contra os vivos. Mas não quer que os julgamentos sejam realizados em seu território.
Desde 2018, a França está à frente das negociações europeias com o governo iraquiano para que os jihadistas europeus sejam julgados lá. A taxa de sucesso, no entanto, tem sido modesta.
Com a opinião pública fortemente contrária à repatriação daqueles que foram lutar com o Estado Islâmico, a França concordou em reaver somente alguns de seus jihadistas. O país foi um importante fornecedor de combatentes estrangeiros para o Estado Islâmico: calcula-se que cerca de mil pessoas migraram para se juntar ao grupo militante de 2012 a 2015.
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Jean-Charles Brisard, diretor do Centro de Análise do Terrorismo, uma organização de pesquisa com sede em Paris, disse que cerca de 80 combatentes franceses do Estado Islâmico ainda estão detidos no Iraque e na Síria.
"A posição francesa é uma posição política, com base na rejeição da opinião pública à repatriação. Mas, no que diz respeito ao nosso sistema judicial, tudo está pronto para que isso se realize, incluindo os presídios", disse Brisard.
E os tribunais. Nos últimos dois anos, os tribunais franceses julgaram dezenas de jihadistas que estão supostamente mortos. Os tribunais tiveram pouca escolha, já que os serviços de inteligência não conseguiram entrar nas zonas de combate da Síria e do Iraque para confirmar as mortes.
O julgamento de janeiro foi uma prévia do que se tornou uma abordagem complexa do combate ao terrorismo, já que a França se prepara para os tão aguardados julgamentos dos acusados do ataque ao jornal "Charlie Hebdo" e dos suspeitos dos ataques de novembro de 2015 à casa de shows Bataclan, bem como de outros locais em Paris.
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A França investiu pesado para adaptar seu sistema de justiça criminal à ameaça jihadista e agora conta com uma das legislações de combate ao terrorismo mais abrangentes da Europa.
"É um sistema judiciário que permite interpretação. Para ser processado, basta estar vinculado às atividades jihadistas", disse Antoine Mégie, especialista em leis de combate ao terrorismo da Universidade de Rouen, no norte da França.
O julgamento de janeiro, no entanto, mostrou que o processo também pode ser kafkiano. O réu que Ory representou – Quentin Roy, um homem dos subúrbios de Paris que foi lutar com o Estado Islâmico na Síria, em 2015 – foi um exemplo disso.
Os arquivos do tribunal apontam que Roy provavelmente se explodiu no Iraque em janeiro de 2016, dizendo que estava ligado a "atividades militares que o levaram a se tornar um homem-bomba".
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"Vocês estão julgando um homem que cometeu suicídio. Alguém já viu uma contradição maior do que essa?", indagou Ory à corte.
Roy fazia parte da chamada rede Sevran, uma base de recrutamento jihadista situada na pequena cidade de Sevran, nos arredores de Paris. Ela funcionava em uma sala de oração informal, mais tarde conhecida como "Mesquita Daesh", e usava um nome alternativo para o Estado islâmico. Dos 24 réus do julgamento, 13 haviam frequentado a mesquita.
Diante dos juízes, os pais de Roy, Véronique e Thierry, relataram como o filho se converteu à ideologia jihadista em apenas alguns meses.
"É o julgamento da radicalização sectária", disse Véronique Roy, ao descrever como seu filho, após sua conversão ao islamismo em 2012, abandonou os estudos e o trabalho e terminou com sua namorada.
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Em setembro de 2014, Quentin Roy disse aos pais que tinha de ir a Frankfurt, na Alemanha, por conta de seu trabalho como motorista do Uber. Alguns dias depois, ele estava atravessando a fronteira da Turquia com a Síria.

Da mesma forma que fizeram com a família Roy, os juízes do julgamento recorreram a parentes para reconstruir a jornada dos 19 réus que estão supostamente mortos.
Entre os réus estavam os irmãos Mohamed e Mehdi Belhoucine, que foram ligados ao ataque realizado por Amedy Coulibaly a um supermercado kosher, em janeiro de 2015.
Mohamed Belhoucine foi considerado o mentor da Coulibaly. Mehdi Belhoucine foi acusado de organizar a ida da esposa de Coulibaly, Hayat Boumeddiene, à Síria. Os irmãos Belhoucine foram da França à Síria no início de janeiro de 2015.
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Acredita-se que os irmãos Belhoucine tenham morrido nos campos de batalha na Síria e no Iraque, em 2016. Seus pais receberam mensagens de combatentes do Estado Islâmico notificando-os da morte de seus filhos. Mas a veracidade desses relatórios, em territórios fora do alcance dos investigadores franceses, não pode ser comprovada.
Os serviços de inteligência também temem que reconhecer a morte de jihadistas possa ajudar alguns que ainda estão vivos a esconder seus rastros. Em agosto de 2015, um dos principais recrutadores de jihadistas franceses, Omar Omsen, fingiu sua própria morte antes de reaparecer dez meses depois em uma entrevista à televisão.
"Enquanto não tivermos provas irrefutáveis de suas mortes, temos de julgá-los", disse Stéphane Duchemin, presidente da corte, à mãe dos irmãos Belhoucine.
Mesmo com a continuação dos chamados julgamentos fantasmas, o governo francês pode ser forçado a moderar sua posição e permitir a repatriação de ex-combatentes. Em parte, isso se deve ao colapso das negociações para continuar conduzindo julgamentos no Iraque, mas também ao agravamento da segurança na Síria, onde centenas de combatentes do Estado Islâmico europeu estão detidos.
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"Se não for mais possível julgá-los no local, não vejo outra solução senão trazer essas pessoas de volta à França. Não podemos arriscar que eles fujam e desapareçam", disse a ministra da Justiça francesa, Nicole Belloubet, ao jornal "Libération" em 10 de janeiro.
Ainda assim, Belloubet reconheceu em entrevista a uma rádio francesa que "nossa opinião não mudou" em relação a trazer os suspeitos de volta à França para serem julgados.
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