Terra beijada pelo mar e abraçada pela montanha, cuja beleza vai além da imaginação mais generosa, Santa Catarina encanta sua gente, paulistas, cariocas, gaúchos, paranaenses, baianos e hermanos. Mas não é só de paisagens e recantos naturais que se faz o turismo por aqui. Do Museu do Mar em São Francisco do Sul, no Litoral Norte, à Casa de Anita Garibaldi em Laguna, no Litoral Sul, passando pela Rota da Imigração — especialmente no Vale do Itajaí –, centros históricos, casas urbanas e rurais, engenhos, igrejas, praças e fortificações constituem um patrimônio cultural inigualável, erguido por quem escolheu este pedaço de terra no sul do mundo para morar, viver, trabalhar, amar e morrer.
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A estimativa da Secretaria do Estado de Turismo, Cultura e Esporte (SOL) é de que quase 10 milhões de pessoas tenham circulado por Santa Catarina entre dezembro de 2017 e o Carnaval de 2018 — um aumento de cerca de 10% em relação à temporada passada. Sabe-se que, no verão, a costa catarinense atrai até mesmo góticos e notívagos e, no inverno, a neve e os cânions da região serrana fazem brilhar os olhos até mesmo dos mais friorentos. Ainda que as belezas naturais sejam o principal atrativo do Estado, o turismo cultural tem papel fundamental nesse processo, apesar de não haver um cálculo sobre sua contribuição para a quantidade de visitantes.
— Quando a gente pega a base do turismo em Santa Catarina, tirando a belíssima natureza e o turismo de eventos, todo o resto é turismo cultural. Temos um grande potencial, muito em função da diversidade do Estado. Temos o litoral, a cultura serrana, o Oeste, os imigrantes europeus no Vale do Itajaí… Essa variedade toda nos coloca na ponta em termos de potencial, apesar de ainda estarmos bastante atrasados em termos de execução — afirma a diretora de preservação do Patrimônio Cultural da Fundação Catarinense de Cultura (FCC), Vanessa Pereira.
As viagens a passeio sempre existiram, mas sua globalização é fenômeno recente. No Brasil, a massificação do turismo foi impulsionada neste século por uma classe média emergente que finalmente pôde colocar a mão no bolso para ampliar seus horizontes e conhecer culturas e tradições diferentes de sua terra. Ainda que Santa Catarina continue atraindo visitantes por suas belezas naturais, alguns exemplos vão além da caipirinha e do camarão frito na beira da praia e mostram que é possível olhar para o futuro falando do passado.
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A 34ª edição da Oktoberfest, em Blumenau, a maior festa alemã das Américas, recebeu 568.027 visitantes. O Museu do Mar, em São Francisco do Sul, recebeu 43.395 pessoas ao longo do ano passado. Mas talvez o melhor exemplo catarinense de aproveitamento do patrimônio histórico-cultural sejam as Fortalezas da Ilha de Santa Catarina (incluindo a Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim, no município de Governador Celso Ramos), que tiveram quase 200 mil visitantes em 2017.
— Valorizar a própria cultura, desde os bens tombados ao patrimônio imaterial (a Unesco define como patrimônio imaterial “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos, reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural”), é um ativo turístico muito importante. Independentemente do tamanho da cidade, todas têm sua história e cultura e podem cumprir um papel nessa economia super globalizada — comenta a diretora de preservação da FCC.
PONTO DE PARTIDA
A criação da Capitania de Santa Catarina, em 1738, é o marco inicial da história catarinense que, hoje, impulsiona o turismo cultural. Até então, os núcleos de população situados ao longo da costa — São Francisco, Desterro e Laguna — eram pequenas aglomerações de pescadores e lavradores fundadas por vicentistas que saíram da Capitania de São Paulo e se radicaram nessas áreas.
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Naquela época, os reinos de Portugal e Espanha disputavam o controle do Rio da Prata, onde hoje estão Argentina e Uruguai. Dominar a região era ter poder e riqueza, e, no caminho até lá, em posição estratégica, estava a Ilha de Santa Catarina. Já no século 18 este pedacinho de terra perdido no mar, de beleza sem par, atraía as atenções europeias, principalmente porque ali se podia consertar as embarcações e se abastecer de água e alimentos.
Nem Portugal nem Espanha respeitavam o Tratado de Tordesilhas, que desde 1494 havia dividido o continente sul-americano em dois: uma linha imaginária que ia de Belém (PA) a Laguna (SC) determinava que o que estivesse do lado mais próximo do Oceano Atlântico seria de Portugal, o que estivesse mais próximo do Oceano Pacífico seria da Espanha. Portugal fez vistas grossas e levou sua sanha colonizadora ao Rio da Prata.
Para dominar aquela região, era fundamental controlar a Ilha de Santa Catarina. Assim, Portugal mandou um governador para a recém-fundada Capitania. O brigadeiro José da Silva Paes, um talentoso engenheiro militar que logo percebeu a necessidade de criar um sistema de defesa contra os inimigos e, em 1739, deu início à construção de um conjunto de fortificações, em especial às três fortalezas localizadas na baía Norte: Santa Cruz de Anhatomirim, em Governador Celso Ramos, São José da Ponta Grossa, na praia do Forte, e Santo Antônio de Ratones, na Ilha Ratones Grande.
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— Eram edifícios não só militares, mas que marcavam a posse do terreno. Naquela época, a posse não se dava por certidão em cartório, mas pelas construções no local. Então, as fortalezas marcavam o domínio português, mesmo que não entrassem em combate — conta o coordenador das Fortalezas da Ilha de Santa Catarina, pasta da Secretaria de Cultura e Arte da UFSC, Salvador Gomes.
As fortalezas foram os primeiros monumentos arquitetônicos a marcar a terra catarinense e a dar depoimento pioneiro de seu povo. Até hoje, a grandiosidade das construções impressiona quem as visita. A professora de Ciências da Computação Alessandra Dutra, de 44 anos, é natural de Florianópolis, mas hoje mora em Porto Alegre. Sempre que volta à cidade natal faz questão de visitar a Ilha de Anhatomirim.
— Já vim mais de 10 vezes. Desde pequena nas excursões da escola, depois quando vinha trazer os amigos e agora para matar a saudades. É um lugar histórico que faz a gente pensar em outros tempos e dá para ver que tem um trabalho muito bonito de restauração e preservação. Dá muito orgulho — comenta Alessandra.
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SÉRIE DA NSC TV RESGATOU MEMÓRIA DAS FORTALEZAS
No início do mês de fevereiro deste ano, a NSC TV exibiu uma série de quatro episódios contando a memória das quatro fortalezas da Ilha de Santa Catarina, reapresentada neste sábado às 14h. O ápice dessa história é a invasão espanhola de 1777, ano em que a Ilha passou para o controle hispânico e quase mudou o destino do povo catarinense. Guillermo Abril, de 45 anos, é um dos milhares de argentinos que visitaram a Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim nesta temporada. Surpreso com a história do domínio espanhol, Guillermo se divertiu com a possibilidade de ser nosso compatriota em vez de nosso hermano.
— Com toda essa beleza de Santa Catarina, seria lindo. Brincadeiras à parte, somos todos sul americanos e, com exceção do futebol, estamos todos juntos. É muito legal conhecer um lugar como esse e saber um pouco mais da história do nosso continente.
Para infelicidade dos hermanos, o domínio espanhol durou pouco tempo. Como o arquiteto da UFSC Roberto Tonera disse em entrevista a Ricardo Von Dorff na série da NSC TV, “os espanhóis eram bons de briga, mas os portugueses eram melhores de lábia”.
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Em 1777 a armada espanhola, composta por 117 embarcações — a maior que já atravessou o Atlântico em toda a história —, desembarcou na Ilha de Santa Catarina sem que as fortalezas disparassem um único tiro de canhão. Ao despontar na Baía Norte, os espanhóis perceberam o poder destrutivo das três fortificações dispostas em um triângulo de fogo cruzado e, então, desembarcaram a pé em Canasvieiras.
— Os espanhóis não forçaram a entrada na Baía Norte, optaram por desembarcar em Canasvieiras e fazer um bom trecho a pé. A esquadra portuguesa não estava na Ilha porque tinha sido convocada no Rio de Janeiro e as tropas portuguesas estavam em menor número que as espanholas. Foi uma questão estratégica que decidiu o confronto — afirma Salvador Gomes.
Mas como dissemos, o domínio hispânico durou pouco. Ainda em 1777, Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Ildefonso e a Ilha de Santa Catarina voltou às mãos lusitanas depois que a rainha D. Maria I concordou em entregar a posse da Colônia do Sacramento, onde hoje é território uruguaio, ao governo espanhol do Rei Carlos III.
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O INTERESSE EXISTE
As três fortalezas abertas ao público (a quarta, a Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição de Araçatuba, no Sul da Ilha, está fechada) sob tutela da Coordenadoria das Fortalezas da Ilha, subordinada à Secretaria de Cultura e Arte da UFSC. Depois de concluída a restauração, a secretaria ficou responsável pela gestão das visitações. Além disso, a universidade pleiteia, ainda, a inclusão das fortificações na lista de Patrimônio Cultural Mundial da Unesco.
O número de visitantes nas fortalezas de São José da Ponta Grossa, Santa Cruz de Anhatomirim e Santo Antônio de Ratones bateu recorde em 2017: passaram pelas fortificações 182.952 pessoas. Considerando os últimos sete anos, isso representa um aumento de 71% no público visitante. Entre os motivos estão algumas das ações como a criação do “Dia de Gratuidade”, com a isenção da taxa entre março e novembro, sempre no primeiro domingo de cada mês.
Há, ainda, o projeto “Aprender sobre história também é coisa de criança!”, que sensibiliza a garotada da educação infantil e ensino fundamental para a importância de valorizar e preservar as fortalezas da Ilha de Santa Catarina. Além disso, houve também maior esforço de divulgação dos monumentos na mídia e a criação da página da coordenadoria no Facebook, ampliando assim a visibilidade e o conhecimento sobre as construções.
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As entradas para cada uma das fortalezas custam R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia), e a visitação pode ser feita todos os dias, das 9h às 18h (no verão, o fechamento é às 19h.
ESTRATÉGIA DE OCUPAÇÃO
Quando as fortalezas começaram a ser erguidas, em 1739, a Ilha de Santa Catarina não passava de uma aglomeração de pescadores, lavradores e índios que mais passavam do que habitavam-na. A estratégia portuguesa para consolidar o domínio territorial foi, então, trazer quase 5 mil açorianos. Aqui, produziriam comida para as tropas das fortalezas e seus filhos, eventualmente, também seriam soldados do reino português.
Os açorianos vieram para ficar, mas quando a armada espanhola invadiu a Ilha de Santa Catarina, boa parte dos soldados fugiu para o continente. Nos arredores das fortalezas, especialmente na praia do Forte, ficaram algumas famílias. Com o passar dos anos, a Fortaleza de São José da Ponta Grossa foi abandonada e engolida pelo tempo. Antes de sua reforma completa, já no século 20, servia apenas de lugar para a diversão das crianças da comunidade ao redor.
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— Eu nasci aqui e brinquei muito antes da restauração. Depois, fiz minha primeira comunhão na capelinha. Tenho uma ligação muito forte, minha vida está ligada à fortaleza — conta Irene Luci Gaia, que há 23 anos trabalha na portaria do patrimônio histórico.
Irene é casada com o sobrinho do seu Maneca, um simpático senhor de 96 anos, remanescente do tempo em que as famílias do entorno da fortaleza ainda bebiam a água da fonte. Criado ali, em uma casa ao lado do “nosso patrimônio histórico de guerra”, Manoel Leopoldo da Rosa lembra de ter encontrado em toda a vida apenas um descendente daqueles soldados que um dia habitaram a região — o último registro oficial que incluía São José da Ponta Grossa na lista de fortificações existentes na Ilha é de 1864.
— Nasci em 1922. Quando eu era guri, encontrei com um tal de Manoel Coutinho, que era da Bahia. Meus avós contavam que ele era a única pessoa daquela época que tinha ficado no lugar onde eu cresci. Aqui criei minha família, com a água dessa fonte — lembra seu Maneca.
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LENDAS E CONTOS DE ARREPIAR
Lendas e mitos rondam as histórias das fortalezas — além da antiguidade das construções, há o registro da execução sumária de quase 200 ilhéus a mando de Floriano Peixoto, o “Marechal de Ferro”, na Fortaleza de Santa Cruz de Anhatomirim. Como escreveu Rubens Alves: “Seus ferros furaram as paredes de um forte onde os inimigos da República eram executados”. Soma-se a esse fuzilamento os relatos de enforcamentos de presos e dissidentes em um pé de araçá, também em Anhatomirim. Com tudo isso, não são poucos os relatos de quem “viu” assombrações e fantasmas.
— Um dia eu estava aqui no calabouço descansando, quando senti a presença de alguém que não estava aqui. Fiquei apavorada e saí rapidinho. Mas lembro de outra história, de quando eu tinha 12 anos. Meus pais foram à capela (da Fortaleza de São José da Ponta Grossa) à noite e eu e minha prima ficamos do lado de fora brincando. A casa do comandante ainda não tinha sido restaurada. Quando olhamos pra cima, vimos uma pessoa toda de branco andando na muralha, não tinha telhado. Eu me apavorei, entrei na capela e grudei na perna da mãe — conta Irene.
Mas nem todos acreditam nessas lendas. Funcionário mais antigo das fortalezas, Altino Machado trabalha há 40 anos na Ilha de Anhatomirim. Hoje exerce a função de bombeiro hidráulico, mas já fez um pouco de tudo no local que considera sua casa. Entre 1978 e 1980, trabalhou como caseiro e precisou viver ali, somente com a companhia da esposa.
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— Era muito isolado, a gente sabia das histórias de um padre que arrasta a corrente, do escravo que geme no pé de araçá, mas eu nunca vi nada. Para mim, é só lenda pra botar os turistas pra correr — brinca Altino.