É fim de manhã de um dia ensolarado em um espaço de lazer no bairro Vila Nova, em Blumenau. Em determinado momento, perto da pista de caminhada, chega um Gol branco. O motorista manobra o veículo e o estaciona com a parte de trás próxima a um barranco, deixando oculta a frase impressa no vidro traseiro: “A serviço da PMB (Prefeitura Municipal de Blumenau)”.
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Ele desce do automóvel oficial com tranquilidade e percorre a pista do clube a pé durante cerca de uma hora. Depois da atividade, alonga-se, abre a porta do Gol, troca de camisa e dirige por 12 minutos até chegar a uma rua residencial do bairro Velha, onde deixa o carro estacionado na via e entra em uma casa.
O flagrante foi feito pela reportagem, porém o uso do carro público para uma atividade pessoal não poderia ter sido constatado de imediato por quem acessasse o Portal da Transparência. O motivo: há uma falha no sistema que exibe a localização dos veículos oficiais da prefeitura de Blumenau à comunidade. Durante quatro meses, o Santa e o NSC Total acompanharam carros que compõem a frota do município.
O site deveria ser atualizado com base nos aparelhos de GPS instalados em cada veículo, conforme contrato em vigor desde 2017, mas na prática a situação é outra. O Gol flagrado no clube, de placa QIT-3401, pertence à Secretaria de Conservação e Manutenção Urbana (Seurb) e aparece no mapa on-line, mas em um outro ponto da cidade.
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Pelo site de monitoramento, o carro permanece a todo momento estacionado no bairro Jardim Blumenau, a mais de sete quilômetros da sede da Seurb. No entanto, basta uma ida ao endereço para verificar que o carro não está onde a localização indica.

Problema no sistema
Segundo testemunhas, as idas semanais à pista de caminhada com o veículo da prefeitura ocorreram durante quase um ano. A reportagem fez dois flagrantes, nos dias 11 e 15 de julho, por volta das 10h30min. Em uma das fotos feitas no dia 15 o homem olha diretamente para a câmera, o que sugere que ele notou a presença do repórter fotográfico Patrick Rodrigues. Depois disso, nunca mais foi visto no local com o carro oficial.
Durante quatro meses, entre julho e novembro, a reportagem observou 22 dos mais de 150 carros que aparecem no sistema de monitoramento. Destes, 18 não estavam onde o aplicativo mostrava. Em todos os casos o NSC Total fez o registro em foto do local junto ao mapa que deveria mostrar a localização.
Outro automóvel com falhas no sistema de monitoramento é o Gol MHM-1078, que aparece no mapa parado na Rua 7 de Setembro, mas que não foi encontrado pela reportagem nesse local. É o mesmo automóvel usado em 2011 por servidores que foram a uma confraternização no bairro Progresso. À época, o flagrante feito pelo Jornal de Santa Catarina mostrou que oito servidores utilizaram três carros oficiais para ir ao encontro informal promovido por um diretor de Serviços Urbanos, reunindo 24 pessoas.
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Em outro caso, a reportagem até visualizou o carro no ponto indicado, o estacionamento da prefeitura. A falha ocorreu no instante em que a Montana com identificação da Defesa Civil deixou o prédio. No interior do automóvel, um servidor com o colete da instituição seguiu em direção ao bairro Victor Konder, por volta das 10h40min, no dia 31 de agosto. O GPS, porém, não atualizou o trajeto. O sinal no mapa continua o mesmo desde então.
O site indica que as informações são atualizadas a cada 10 minutos, mas não é o que ocorre, já que os pontos no mapa não saem do lugar.
Além da Montana, apenas outros três carros, todos da Secretaria de Promoção da Saúde (Semus), foram encontrados nos locais indicados: dois no estacionamento da Vigilância Epidemiológica, na Itoupava Seca, e um no Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), no Jardim Blumenau.
Do total, 10 veículos são ligados à Secretaria de Saúde, quatro à Secretaria de Planejamento, três à Secretaria de Serviços Urbanos, dois à Secretaria de Administração, um à Secretaria de Defesa Civil, um à Secretaria da Fazenda e outro à Secretaria de Educação.
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O que diz o contrato de monitoramento
O contrato entre a prefeitura e a empresa Khronos, responsável por rastrear e monitorar pouco mais de 300 veículos municipais via satélite, foi publicado no final de 2017. Com valor inicial de R$ 534 mil durante o período de 12 meses, o pagamento foi reajustado ano após ano. Atualmente, com vencimento em dezembro de 2022, está em R$ 606,9 mil.
O contrato prevê, explica a prefeitura, o fornecimento de equipamento de GPS, a instalação nos veículos, monitoramento 24 horas, sistema para fornecimento de dados que possa ser consultado on-line, por meio de senha própria utilizada pela Diretoria de Patrimônio, acesso a relatórios e armazenamento de dados pelo período de seis meses.
“A disponibilização do rastreamento no Portal da Transparência não é uma obrigatoriedade prevista em contrato, mas é um serviço prestado de comum acordo com a fornecedora, sem ônus para o município”, ressaltou a prefeitura em nota.
O que dizem especialistas
O advogado e membro da Comissão de Moralidade Pública da OAB Blumenau, Rodrigo Jansen, ressalta que os veículos pertencentes à frota do município só podem ser usados com a finalidade de atender às demandas das secretarias e entidades ligadas ao setor público.
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– A utilização indevida de veículo de propriedade do ente público em proveito próprio ou para fins de interesses particulares pode ensejar dois tipos de responsabilidade para o servidor infrator: civil e administrativamente – explica
Isso significa que o ato de improbidade administrativa pode ser investigado no âmbito judicial e administrativo, já que reflete um dano ao erário, pois são gastos pessoais com combustível e manutenção, por exemplo, pagos com dinheiro público.
– Aparentemente o serviço [da transparência no site] não está sendo entregue – complementa.
A prefeitura instituiu em agosto deste ano, acrescenta o advogado, um novo código de ética, que estabelece como conduta vedada a utilização, para fins privados, de equipamentos, bens ou serviços exclusivos da administração pública.

Desde 2013 os servidores não podem usar os carros sequer para o transporte entre casa e trabalho, exceto em situações específicas e previamente autorizadas. O uso de adesivos nos veículos facilita esse controle, assim como o monitoramento em tempo real.
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Porém, quando esse acompanhamento apresenta falhas, o serviço pouco adianta, avalia Jansen. O presidente do Observatório Social de Blumenau, Marcelo Deschamps, reforça que esse tipo de informação precisa da maior transparência possível, justamente para que tanto interna quanto externamente se saiba onde estão os carros mantidos com dinheiro público.
— Nós precisamos saber como é feito o plano de manutenção deles. Nosso papel é sugerir melhorias — explica o presidente.
Além do Portal da Transparência, os cidadãos podem acessar o monitoramento da frota da prefeitura no aplicativo do AlertaBlu. No entanto, em nenhum dos casos os dados estão sendo atualizados.
Prefeitura admite falha
Em nota, a prefeitura de Blumenau confirma que o homem fotografado pela reportagem é servidor de carreira, engenheiro de área, lotado na Seurb. A responsabilidade dele é apurar e avaliar o que precisa ser feito quando os problemas da comunidade chegam. Por isso, tem autorização para ficar com o veículo oficial 24 horas por dia. Porém, ressalta o governo, o carro deve ser utilizado “exclusivamente para deslocamentos pertinentes às atividades, neste caso da Seurb”.
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“Mediante a confirmação da denúncia, a prefeitura irá apurar o ocorrido, por meio de processo administrativo adequado e, se constatada a irregularidade, dar sequência aos devidos procedimentos para responsabilização do servidor envolvido”.
Sobre o site de monitoramento da frota, a prefeitura garante não haver prejuízo para o acompanhamento dos veículos, já que o que é exibido no Portal da Transparência é diferente do controle interno, onde “os dados fornecidos são precisos, corretos e atualizados em tempo real”. A reportagem checou na prefeitura o site usado pelos servidores e constatou que as atualizações em tempo real realmente ocorrem, diferentemente do que é exibido na transparência à comunidade.
O município reconheceu existir uma falha e afirmou que trabalha na correção desde que foi informado pela reportagem.
“Eventualmente, podem ocorrer lapsos na atualização ou informação, assim como pode acontecer com qualquer plataforma eletrônica. Todo e qualquer cidadão pode também solicitar informações sobre a frota por meio do E-Sic”, complementou.
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A prefeitura também esclarece que o mapa não exibe todos os mais de 300 carros oficiais por uma questão de segurança e estratégia, como por exemplo em casos de veículos que são usados nas blitze (o que permitiria saber previamente da fiscalização) e no transporte de autoridades.
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