O telefone tocou na manhã do domingo passado quando eu ainda dormia. A voz afobada do outro lado perguntava se já sabia da tragédia em Santa Maria. Como ajudar, o que fazer a uma distância de 810 quilômetros do fato? Ao compartilhar a informação com colegas, decidimos enviar uma equipe a Santa Maria para se somar aos veículos do Grupo RBS na cobertura: a subeditora Vanessa Franzosi, a repórter Sâmia Frantz, o editor de Fotografia Emerson Souza e eu.

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Fizemos as malas com a mesma velocidade com que aumentava o número de corpos retirados da boate Kiss. Reunimos o time no aeroporto, e o celular do colega Emerson não parava de tocar: um sobrinho de Santa Maria estava desaparecido. Em lágrimas, ele fez o check-in, mas, para nosso alívio, o menino foi logo encontrado. Também aos prantos, minha mãe falou comigo por telefone, chocada pela estupidez do ocorrido, aproveitando para me justificar por que os pais se preocupam tanto, por que eles não dormem enquanto os filhos não retornam da balada.

Ao final da tarde de domingo entramos em Santa Maria, e chegamos à Redação da RBS minutos antes de serem divulgados os nomes dos mortos. À minha frente, a repórter de Economia do Diário de Santa Maria, Juliana Gelatti, vasculhou a lista, encontrou um primo e não conteve a emoção. Enquanto isso, Sâmia foi ao Ginásio Farrezão em busca de contatos com familiares das vítimas catarinenses, Emerson emendou pauta noutra, Vanessa foi ao Hospital Universitário, e eu fiquei na edição do material. Entramos em uma rotina frenética, em piloto automático no trabalho, talvez com medo de interiorizar as consequências da tragédia.

Mesmo percebendo que o calçadão sempre lotado do Centro de Santa Maria parecia domingo, em plena segunda-feira, mesmo vendo uma enorme faixa preta cobrindo a porta de entrada do Avenida Tênis Clube, palco de tantas festas que fiz acompanhada de primos, mesmo ouvindo o porteiro do restaurante dizer, inconsolável, que Santa Maria nunca mais será a mesma, demorei a perceber aonde estava metida. Ao elogiar a reportagem do colega Moisés Mendes, de Zero Hora, sobre o dia seguinte de quem ajudou no resgate, ele me confidenciou, usando um jargão do mundo esportivo:

– Só quando voltei a Porto Alegre a minha ficha caiu.

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Na quarta-feira, Vanessa voltou para Florianópolis e, de casa, me mandou a mensagem:

– Cheguei, Deca. Tudo certo na viagem. Só que desmoronei. Aquela ficha caindo.

Vanessa teve de recompor-se rápido. Na manhã seguinte, chegou à Redação do Diário Catarinense em meio ao retorno dos ataques a ônibus.

Iniciei esta carta em Santa Maria, imersa na tristeza dos números de mortos e de feridos, inquieta com culpados que não aparecem, comovida com a rede de solidariedade Brasil afora. Chegaram na quinta-feira para nos substituir os colegas Edgar Gonçalves e Bianca Backes, e tão logo fechamos a edição, rumei para Florianópolis.

Às 7h20min de sexta-feira, desembarquei no Hercílio Luz, com a notícia de que a madrugada havia sido ainda mais violenta, com o incêndio do posto policial de Canasvieiras e um rapaz internado com queimaduras por não ter conseguido descer do ônibus em chamas nos Ingleses. Ao chegar à Redação, é como se tivesse entrado em outra rotina frenética, sem ter tempo de sentir o mesmo que Moisés e Vanessa quando retornaram ao lar.

A minha ficha ainda não caiu.