Thedy Corrêa*

Um fã desavisado poderia supor que se deu um erro de impressão na capa do novo disco de Charly García. Ou seria de Fito Páez? Afinal, a foto é de Charly, mas o nome estampado é de Fito. O fato é que estamos diante de um álbum icônico, tanto quanto a imagem estampada na capa.

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Um dos nomes da música argentina mais populares no Brasil, em especial no Rio Grande do Sul, Fito Páez estava perdido. Em crises pessoais e criativas. Uma separação da jornalista Júlia Mengolini – traumática e rica em escândalos públicos – fez com que o músico argentino se lançasse à tarefa de realizar um novo disco para ocupar a cabeça e reencontrar seu caminho criativo. Resolveu tomar o rumo do rock and roll! Chamou o produtor-guitarrista Diego Olivero para ajudá-lo e começou a compor.

Percebeu uma semelhança da primeira canção, Ella Sabe Todo de Mi, com a essência criativa de Charly García. A maneira de harmonizar o piano, de colocar as palavras, de estruturar o tema. Quando isso ocorreu também com a segunda canção, Fito e Diego chegaram à conclusão de que havia mais do que uma simples influência: Charly estaria, no sentido figurado, “ditando” as canções.

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Fito entendeu que Charly seria um norte na sua reconstrução pessoal e artística. Estaria presente nas decisões musicais, no trato das letras – expondo a sua verdade até as entranhas – e até mesmo nos arranjos. Fito foi mais longe. O disco foi mixado pelo nova-iorquino Joe Blaney, que trabalhou com Charly em discos emblemáticos como Clics Modernos e Piano Bar. Nesse último, Fito fazia parte da banda que acompanhou Charly nas gravações e na tour. O resultado se chama Rock and Roll Revolution, ou apenas RRR, um amálgama roqueiro de Fito e Charly.

Uma das principais qualidades de RRR são suas canções discursivas e conjunturais, como a que dá título ao álbum e Tendré que Volver a Amar – que remete à também icônica Al Lado del Camino, do disco Abre (2000). Nelas, Fito confirma o inspirado letrista e o observador crítico e mordaz da sociedade argentina. Recheadas de bons riffs e guitarras pesadas, dão o tom do disco: urgência e feridas pessoais expostas. Como nos versos furiosos da impressionante La Canción de Sybil Vane (Não quero que me toque /não quero que me olhe /não que te ver nunca mais /f.d.p.).

Mas também existe doçura e uma lenta e nostágica melancolia no mundo de Fito/Charly: Muchacha, Ella Sabe Todo de Mi e a linda balada Los Días de Sonrisas, Vino y Flores – um dos momentos mais emocionantes. Além de uma canção quase desconhecida do próprio Charly, com o apropriado nome Loco. O disco encerra com uma canção que o resume, Hombre Lobo (Yo). Trágica, aponta para um renascimento um tanto dolorido e violento. Um homem que uiva para o mundo (Quando um coração se parte /chora a cidade). RRR tem raiva e elegância, dor e inspiração.

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Não é uma homenagem de Fito a Charly, é uma rara declaração de amor. Um dos melhores discos do rosarino que teve sua identidade devolvida pelo fantasma do ídolo. Fito disse que “todos nós, argentinos, somos Charly García”, e com RRR ele acaba de revelar sua parcela dessa teoria.

*Músico