Depois de adaptar a obra de Cormac McCarthy no muito bom A Estrada (2009), o diretor de origem australiana John Hillcoat deu ao músico Nick Cave a tarefa de escrever um roteiro sobre a lenda dos Bondurant, trio de irmãos caipiras que enfrentaram a lei nos EUA pós-Grande Depressão de 1930 e, entre seus pares, construíram a fama de “invencíveis”. Também cooptou alguns dos astros da hora em Hollywood – todos ansiosos para trabalhar com ele depois de assistirem ao seu longa anterior – e fez um filme que, ao menos entre as produções voltadas para o grande público, tem tudo para levar o título de melhor de toda a temporada.
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Em cartaz desde o último fim de semana, Os Infratores é o terceiro longa escrito por Cave – os outros dois, também dirigidos por Hillcoat, são o western australiano cult A Proposta (2005) e o thriller menos conhecido por aqui Ghosts of the Civil Dead (1988). Os Infratores é um filme de gângsteres que inverte a lógica mitificadora associada ao gênero em Hollywood: saem o glamour e o charme das representações de contraventores como John Dillinger, Baby Face Nelson e Bonnie & Clyde, entra a valentia xucra de Forrest, Howard e Jack Bondurant.
O irmão mais velho, líder do trio, é interpretado por Tom Hardy, o vilão de Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge, com uma empatia digna de Oscar. Shia Labeuf é o caçula deslumbrado e irresponsável. Jason Clarke interpreta o irmão do meio, sujeito que fala bem menos do que bebe. Sua discrição abre espaço para o brilho dos coadjuvantes, notadamente a misteriosa ruiva vinda da cidade vivida por Jessica Chastain (indicada ao Oscar por Histórias Cruzadas) e a filha do pastor cobiçada pelo personagem de Labeuf, interpretada por Mia Wasikowska (a Alice de Tim Burton). O antagonista, cuja presença desencadeia os conflitos dramáticos, é um agente da lei enviado de Chicago brilhantemente caracterizado por Guy Pearce (Amnésia).
O cabelo engomado e o terno bem passado diferenciam o policial, evidenciando seu desprezo pelos hillbillies daquele lugar arcaico encravado nas montanhas do Estado da Virgínia. Ele está lá para destruir os infratores que produzem bebidas alcoólicas clandestinamente em plena vigência da Lei Seca. Enfrenta maior resistência não dos grandes mafiosos da época, como o Floyd Banner encarnado por Gary Oldman (personagem pouco explorado, apesar do talento do ator de O Espião que Sabia Demais), até porque seu foco está nas presas fáceis. Ou melhor, nos caipiras que faziam bourbon no quintal de casa e que, por isso, ele julgava (equivocadamente?) serem alvos acessíveis.
Hillcoat brinca com as lendas dignas de Superman em torno dos Bondurant, usando o humor para mostrar como os conceitos de mocinhos e bandidos eram volúveis, e como suas imagens podiam mudar conforme o ponto de vista. A mise en scène é coisa de mestre, mas o que mais fica de Os Infratores são suas reflexões sobre esse tipo de relação – o bem e o mal, o mito e a realidade. E, para além disso, a maneira como essas dicotomias estão intrinsecamente relacionadas à violência na definição da identidade norte-americana.
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Outro ponto alto do filme é a trilha sonora concebida por Nick Cave e outro australiano, Warren Ellis, a partir de versões folk de canções como White Light/White Heat, do Velvet Underground: a música, como outros aspectos do filme, é representativa do encontro de uma América mítica com a cultura global, encontro este observado com louvável distanciamento. É uma pena que o roteiro de Cave seja quadrado e aposte apenas na repetição das fórmulas mais tradicionais. Se por um lado isso garante comunicação com o grande público, por outro limita a fruição – sem, no entanto, tirar de Os Infratores a profundidade dramática e a sensação de ser uma das melhores lições sobre a formação cultural dos EUA que Hollywood proporcionou nos últimos tempos.