O nome de Marighella em letras vermelhas no fundo preto anuncia, logo no início do filme, como será o tom dos 155 minutos seguintes: sangue e luto. Isso porque, ao assistir a primeira de obra de Wagner Moura como diretor, somos expostos de forma explícita aos horrores vividos durante a ditadura brasileira. A tortura é mostrada em tela cheia, sem cortes. E assim também é com a luta armada da Aliança Libertadora Nacional (ALN). Seus métodos de resistência, ainda que violentos, seus crimes, suas conquistas. Tudo está junto, em paralelo. Embora a atmosfera vivida seja São Paulo, a ficção baseada em fatos reais, acende diferentes questões sobre a participação de Santa Catarina nessa história.

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Relatos esses que o longa-metragem busca colocar em alto e bom som no meio de tantos silenciamentos históricos. Afinal, reafirmar a importância de Marighella como um personagem histórico de resistência – e não somente como um guerrilheiro – é uma das intenções do filme dirigido por Moura. E é assim, de uma forma completamente humana, que os personagens são retratados na obra. Enaltecidos em suas ações de justiça. Criticados em suas ações de violência.

Uma das cenas mais simples e comoventes, por exemplo, é um retrato cotidiano de Marighella e a companheira Clara Charf. Ambos caminham juntos, à noite, escondidos. Estão indo para casa. Marighella, vivido por Seu Jorge, pega uma sacola de compras que Clara, interpretada por Adriana Esteves, carregava. Um retrato cotidiano que aos poucos começou cada vez mais a ser interrompido pelo regime ditatorial. E não só para aliados ou membros da ALN, mas também para estudantes, políticos ou simplesmente cidadãos comuns. Foi assim que a vida dos brasileiros começou a ser amordaçada nos 21 anos de regime.

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Como uma obra ficcional, Marighella propõe-se então a retirar as mordaças que comprimem a percepção atual que a sociedade brasileira ainda possui sobre o personagem principal do filme. O homem que por muitos anos foi colocado somente no local de “terrorista”, “inimigo número 1 do regime” ou então “extremista” passa assim a ter outros adjetivos possíveis para a sua memória. Dessa forma, podemos substituir ou quem sabe acrescentar a ele outras expressões. Ao sair da sala de cinema, começamos a compreender Marighella também como um “pai amoroso”, um homem “apaixonado” e por que não, um “patriota”.

Afinal, Marighella é bom?

Um “novo” Marighella ou um “outro” Marighella?

Estas últimas definições são as que Maria Marighella, por exemplo, sempre carregou consigo. Neta do ativista e vereadora pelo Partido de Trabalhadores (PT) em Salvador, Maria concedeu entrevista ao Diário Catarinense antes de participar do bate-papo sobre o filme que foi realizado no Cine Multi, no Multi Open Shopping, em Florianópolis. Para ela, o filme não apresenta um novo Marighella. Na verdade, apenas revela aquele que esteve sempre presente nas rodas de conversa familiares ou nas conversas entre amigos e companheiros de luta.

– Eu vivo há mais de 45 anos compondo essa história do meu avô. […] Eu aprendi a escrever Marighella antes de escrever o meu nome – disse Maria ao responder sobre a importância do filme para reescrever a história. Obra cinematográfica esta que, na análise da vereadora, se une a uma série de acontecimentos que buscam justamente resgatar narrativas sobre Marighella que vão além da visão importa pelos militares. O transporte do corpo a Salvador, o batismo de uma escola com o nome dele e a publicação de livros do ativista são também fatos que para ela conseguem, junto ao filme, reescrever aquilo se conta.

Além do mandato de vereadora, Maria é atriz e participou de algumas cenas do filme. Questionada sobre como foi a experiência, assim como seu avô, Maria reafirma a alegria em contracenar com o elenco formado por muitos jovens. Em sua luta, Marighella sempre reforçou a importância da juventude na transformação social. Por isso, ela salienta o quando foi importante dividir as cenas com o ator que representou o seu pai, Carlinhos Marighella.

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– Meu pai sabia que o seu pai morreria em algum momento. Aquela cena do filme é uma cena real, mas ele foi sozinho. Ele saiu de Salvador, ele e um tio, apenas para identificar o corpo e enterrar o pai. Ele vai então a São Paulo e vive aquela cena retratada no filme. Aquele jovem, sem apoio do Estado, sem dinheiro, sem proteção, aquele jovem viveu uma jornada de 50 anos para enterrar o seu pai – conta Maria sobre o contexto real por trás da cena em que participa e sobre a verdadeira “cruzada” da família para que os restos mortais de Marighella ficassem em Salvador, sua cidade Natal.

Como Santa Catarina participa da história de Marighella?

Como atriz, Maria Marighella passou por diferentes cidades de Santa Catarina ao longo de sua carreira. Festivais, peças de teatro e até mesmo participações no palco giratório compõem o conhecimento de Maria sobre o território catarinense. No bate-papo entre sessões do filme em Florianópolis, Maria sempre se dispõe à abertura do diálogo com os catarinenses. Conversa esta que ela pretende levar para o âmbito nacional quando o assunto for o avanço da extrema-direita ou dos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, por exemplo.

– Estou de coração aberto, quero contar a minha história, a história da minha família. Espero encontrar um público em Santa Catarina que também esteja interessado no diálogo. […] Espero que esse diálogo possa justamente se colocar a frente da polarização de hoje 

respondeu a vereadora.

Dessa forma, aberta ao diálogo plural de ideias e de propostas, é que Maria Marighella espera encontrar o pleito eleitoral em 2022. Para a política, é esta pluralidade que precisa representar o papel da esquerda em oposição aos possíveis candidatos de direita ou então a uma possível reeleição de Bolsonaro. Maria ressalta então que serão em diversos papéis que a esquerda precisará atuar no que vem. Papéis esses que nos governos de Lula e Dilma não estavam no centro do debantal e indígena. Para ela, serão necessários novos projetos para novos desafios.te, como a questão ambie

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E depois de Marighella?

Quem também busca compreender o papel de Santa Catarina na história da ditadura é o pesquisador Eliton Felipe de Souza. No livro “Eu também fui torturado”, recém-lançado em todo o Brasil, o doutor em história narra as prisões em Santa Catarina de militantes contrários ao regime militar. A obra que é fruto da dissertação de mestrado de Felipe em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Na obra, o historiador narra uma série de depoimentos e revela diversos documentos sobre a Operação Barriga Verde, realizada a partir de 1975 no Estado. É nesse ponto que ambas as histórias apresentam um ponto de cruzamento. Após a extinção em 1974 da luta armada – movimento que a ALN fazia parte – a ditadura volta-se ainda com mais força aos políticos do MDB e também dos ativistas da época. O livro de Felipe retrata a perseguição vivia pelos catarinenses e mostra o lado perverso dos militares no Estado.

O tema ditadura militar percorre toda a pesquisa acadêmica desenvolvida pelo pesquisador. Desde a graduação até o doutorado, o também professor universitário busca compreender mais a política violenta dos anos de chumbo no Brasil. Para ele, entender esse período histórico surge como uma reparação àqueles que sofreram resistindo pelo retorno da democracia e também serve como possibilidade de reflexão para que ações como esta não retornem ao imaginário político brasileiro.

– Infelizmente, vemos que políticos catarinenses que apoiaram a ditadura ainda permanecem no poder e com influência. Isso dificulta muito que essas informações venham à tona. Como cito em um trecho do livro, o depoimento de um político afirma que “ninguém se importava com essas pessoas” ao falar sobre as mortes e torturas – disse Felipe sobre a relevância do trabalho publicado.

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Ao oferecer mais uma fonte de memória da ditadura brasileira, o livro “Eu também fui torturado” consegue também mostrar que a tortura do filme “Marighella” vai muito além de São Paulo. O sangue foi derramado ao longo de diversas cidades brasileiras e o luto permanece até o século atual com a ainda urgente necessidade de revisitarmos a história esquecida da ditadura militar. Ambas as obras, mesmo separadas, surgem como gritos atuais que buscam dar voz a homens e mulheres silenciados durante mais de duas décadas no Brasil.

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