A sala de cinema estava lotada. O público, ou a maior parte dele, era formado por gente que duas décadas atrás abdicou de tardes ensolaradas para acompanhar na televisão um desenho japonês que estourava em todo o país. Crianças curiosas sob tutela de adultos indiferentes também ocupavam algumas poltronas, mas eram minoria. Quem dominava mesmo era a turma dos vinte e poucos. Pareciam ansiosos, excitados, cheios de expectativa. Dentro de poucos minutos, reencontrariam uma fração remota da infância. Era noite de quinta-feira e estreava em Porto Alegre “Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda do Santuário“, releitura em computação gráfica que resume uma saga de mais de 70 episódios em cerca de 90 minutos.
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Os créditos iniciais dão a real àqueles que receberam o filme com paus e pedras. Em homenagem ao mestre Masami Kurumada, diz a mensagem que antecede o longa. E é exatamente assim que deve ser visto, como uma homenagem. Não só ao mestre Kurumada, o criador do mangá que deu origem à história, mas a todos os fãs do passado e do presente. Ao mesmo tempo, serve como porta de entrada para novos admiradores. E diferente de muitos reboots que temos por aí, consegue atingir os dois objetivos com desenvoltura.
A produção vinha sendo recebida com desconfiança pelo pessoal mais dedicado à série. Críticas ferrenhas atingiam desde mudanças simples no visual dos heróis até o modelo de animação adotado. Parece com um Final Fantasy piorado, julgavam. O filme provou, porém, que funciona. E se nem todas as decisões foram acertadas, pelo menos fica a sensação de que tentaram fazer o melhor possível, que trataram bem dos personagens — com exceção de um certo Cavaleiro de Ouro transformado numa versão bizarra do pirata Jack Sparrow, com direito a número musical e muita vergonha alheia.
As armaduras, que causaram tanto estranhamento à primeira vista, ficaram belíssimas, tanto as de bronze quanto as de ouro. Ornamentadas de “neon”, têm design moderno e são mais “práticas” que as antigas (não precisam mais ser carregadas nas costas em caixas enormes e visivelmente desconfortáveis). Os elmos abrem e fecham protegendo os cavaleiros de uma maneira que as outras nunca foram capazes. Trajes de gala, essas novas armaduras.
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Outro ponto forte do filme são as cenas de batalha. Sempre precedidas por entradas pomposas e triunfais, estão entre as melhores lutas registradas ao longo de toda a franquia. O uso de slow motion, talvez demasiado em alguns momentos, ajuda a dar uma dimensão exata da velocidade dos guerreiros. Os golpes clássicos também estão lá, e embora sem aquela coreografia toda, ficaram visualmente impecáveis — não tem como não se arrepiar com um Cólera do Dragão ou Meteoro de Pégaso. A manutenção dos dubladores (outro grande acerto de emocionar tupiniquim) contribui para o sentimento de nostalgia dos grandes confrontos.
Talvez o principal problema do filme seja o tempo. Uma hora e meia é pouco, e isso é previsível, para dimensionar uma epopeia como a Batalha das Doze Casas. Com o roteiro desenvolvido à máxima definição do termo agilidade, a missão dos defensores de Atena pareceu ser menos complicada do que prometia ser. E a vitória, nem tão apoteótica. Pelo mesmo motivo, tempo, também foi difícil desenvolver os personagens, que são apresentados às pressas. Suas histórias de vida não ganharam aprofundamento, o que não interfere no entendimento dos fãs das antigas, mas que pode deixar marujos de primeira viagem boiando. Por outro lado, o filme ganhou em dinâmica, vai direto ao ponto, sem encheção de linguiça. Ainda assim, fica a impressão de que tudo passou rápido demais — o que pode ser visto como um ponto positivo.
Há mudanças significativas no enredo, como a localização física do Santuário, o sexo de determinado Cavaleiro de Ouro, os oponentes de alguns embates e por aí vai. Entretanto, todas essas alterações ou não interferiram ou melhoraram a trama. O tom também mudou, menos piegas e mais focado ao humor — algumas cenas são impagáveis, provando que japonês também sabe fazer graça. A postura dos cinco cavaleiros principais não foi alterada, mas acentuada. Ikki é tão solitário que quase não aparece; Hyoga é o mais frio (ha) de todos; Seyia é o palhaço da turma; para Shun, é melhor dialogar do que resolver as coisas no soco; Shiryu continua sendo o sabichão, só que dessa vez ele é zoado por conta disso.
No fim das contas, Cavaleiros do Zodíaco: A Lenda do Santuário é um filme de superar expectativas. Uma animação moderna, engraçada e cheia de ação. Não apela para a sanguinolência, mas também não economiza na porrada. Deixa uma mensagem de união, amizade e persistência. E se não agradou aos fãs mais ortodoxos, também não os ofendeu. As crianças que cresceram naqueles longínquos anos 90, e que hoje levam os próprios filhos pela mão, têm uma bela oportunidade de demonstrar aos pequenos como foram felizes um dia. Aos que ainda prolongam a adolescência, uma ode ao saudosismo no cinema mais próximo de você.
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*Diogo Pereira é jornalista e editor do blog HagaQuê