O tom de voz naturalmente baixo se torna inaudível conforme as lágrimas chegam. O par de olhos azuis, dois oceanos, perdem-se no horizonte. Gertrud Mayr, a Tula, se cala. Falar sobre o filho Frederico, torturado e morto por agentes de repressão militar, é sempre doloroso. Nem o tempo curou. E já se passaram 40 anos. Quarenta.
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– No começo eu chorava muito, mas meu filho menor pediu: por que em vez de chorar pelo filho perdido não se dedica ao vivo? Então, fiz um esforço para me controlar. Teve a fase em que me senti forte. Só que a velhice traz incontinências, e a minha é de lágrimas – explica Tula, hoje com 86 anos.
>>Assita o depoimento de Gertrud Mayr, que é o segundo do vídeo<<
As primeiras duas décadas após o desaparecimento de Frederico, na época com 23 anos, foram as piores da vida de Tula. O desgaste causado pela procura incessante pelo paradeiro do filho, numa espécie de batalha particular, deixou sequelas. Uma delas é um bloqueio na memória toda vez que precisa retomar o assunto. Mas há sofrimentos inesquecíveis.
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– Logo que ele desapareceu, pacientes do meu marido (médico) voltavam da Europa e diziam ter visto o Frederico em Paris. Daí, fui até lá. Perdi as contas da quantidade de vezes que corri até alguém, achando que era meu filho, e estava enganada. Anos mais tarde, quando trabalhava como guia turística, via as pessoas sendo recebidas por parentes no aeroporto e só lembrava que nunca mais ia poder abraçar o meu filho – encerra, às lágrimas, na casa onde mora em Blumenau.
Tula, junto com mais duas famílias do Vale do Itajaí, tiveram renovadas as esperanças de obter respostas sobre as circunstâncias das mortes de parentes vítimas da repressão militar. Elas terão o nome do familiar morto durante a ditadura indicado para que a Comissão da Verdade investigue.
De acordo com documento do antigo Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS/SP), Frederico foi baleado no abdomen ao ser preso por agentes do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI), na Avenida Paulista, em São Paulo, dia 23 de fevereiro de 1972. Levado para a sede do órgão, o militante do Movimento de Libertação Popular (Molipo) foi torturado e morto.
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– O que os meninos queriam, já naquela época, é que a pobreza chegasse ao que hoje é a classe média. Por isso eles lutaram e por isso morreram – defende a mãe.
Frederico foi enterrado com nome falso e como indigente no Cemitério Dom Bosco, Bairro de Perus, Zona Oeste de São Paulo. Tula soube disto somente em 1992, quando a ossada do militante foi identificada e entregue à família.
Isso só foi possível porque dois anos antes a vala clandestina onde estava enterrado foi aberta e, um convênio entre a prefeitura, o Estado de São Paulo e a Universidade de Campinas possibilitou a identificação desta e de outras ossadas de desaparecidos políticos. Desde então, Tula se considera uma sortuda:
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– Quantos pais de desaparecidos ainda não puderam enterrar os filhos. Enquanto você não tem o corpo, a coisa não se consuma. Pude dar um enterro digno a ele e viver o luto. Chorei uma semana sem parar, como se ele tivesse morrido naquela semana.
Os restos mortais foram levados para o jazigo da família, no Rio de Janeiro, terra natal do pai e cidade na qual Frederico foi criado. Apesar de encerrado um ciclo de sofrimento com o enterro dos restos mortais, Tula se manteve envolvida com grupos de familiares de desaparecidos políticos. Não espera que a Comissão da Verdade revele muito além do que já sabe sobre a morte do filho, mas torce por outros pais:
– Lutar para que a verdade venha à tona é um compromisso que, nós, pais de vítimas da ditadura, temos com nossos filhos. Se não fizermos isto, estaremos abandonando eles. Já recebi, várias vezes, recomendação para deixar esta história de lado porque machuca. Mas não consigo parar. Seria a mesma coisa que colocá-la no esquecimento.
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Nascido em Timbó, Frederico mudou-se com a família para a capital fluminense antes de começar a frequentar a escola. Aos 13 anos, já demonstrava talento para as artes plásticas, atividade mantida paralela ao curso de Arquitetura, frequentado até o segundo ano, quando a repressão militar o obrigou a viver na clandestinidade.
– Ele e os amigos estavam envolvidos em pensar o que estava certo, o que não estava, quem queriam ser. Achava ótimo. Não percebi que estavam entrando numa área política. Os estudantes estavam se movimentando por mudanças em todo o mundo. Foi um susto quando ele teve de desaparecer do Rio.
Hoje, as telas pintadas durante a adolescência decoram as paredes do apartamento onde Tula vive sozinha, no Bairro Vila Nova, em Blumenau. Uma forma de homenagear o filho do qual tem muito orgulho.
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>>Leia a primeira matéria da série, que conta o drama de Clelia Gomes de Mello<<
Confira na edição impressa do Santa desta segunda-feira a reportagem completa.