A “espera infernal”, como descreve a moradora de Florianópolis Ashley Costa, fez com que ela entrasse na Justiça para tentar conseguir a cirurgia de redesignação sexual pelo SUS. O processo ainda está em fase de recurso. Paralelamente, ela também denunciou a demora — e a falta de previsibilidade — ao Ministério Público do Estado. Nos documentos, relata as angústias de viver aprisionada a um corpo no qual não se reconhece. O MPSC instaurou um inquérito civil e cobrar explicações do governo de SC.

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A promotora Isabela Ramos Philippi deu até o dia 15 de abril para a Secretaria de Estado da Saúde informar sobre as tratativas para credenciar hospitais em SC; informar quantos pacientes aguardam na fila de espera; apresentar listagem de procedimentos cirúrgicos de redesignação sexual realizados em pacientes de SC desde 2016 e informar a relação dos pacientes na lista de espera para procedimento cirúrgico ou encaminhamento a partir de 2020.

Trecho do documento do MPSC

Ashley conseguiu encaminhamento do Estado para fazer a cirurgia em Goiás há cerca de um ano e meio, mas a fila não anda. Pelo contrário. Ela diz que às vezes sobe algumas posições, às vezes cai. Mas para conseguir estar nessa fila, a moradora de Florianópolis mostra muitos e-mails de cobrança. Estar cadastrada no sistema, porém, não alivia o estresse da situação.

— As pessoas sofrem, e muito, por estarem no corpo errado. Por ter um membro que elas não reconhecem.

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O Ministério Público não se manifestou sobre a abertura do inquérito civil para apurar a situação, mas confirmou o prazo de 15 dias dado ao governo do Estado para prestar esclarecimentos. A denúncia de Ashley também está na Defensoria Pública de Santa Catarina, onde não é a única, conta a defensora Ana Paula Berlatto Fão Fischer. A instituição já ajuizou algumas ações contra o Estado para tentar garantir o direito de pacientes às cirurgias do processo transexualizador.

A Defensoria, inclusive, já se reuniu com a Secretaria de Estado da Saúde para entender o cenário e propor soluções.

— Esse diálogo é para que o Estado saia da inércia e cumpra seu dever em relação a essas pessoas. O governo já não exercia seu papel mesmo facilitando o encaminhamento para outros estados, mas hoje não se tem nem essa via intermediária. Então, SC precisa pensar nessa política pública, habilitar unidade adequada e fornecer esses procedimentos — pontua.

Trecho do documento da DPE

O preço da demora é a saúde mental

A incerteza sobre a data da cirurgia é combustível para problemas de saúde mental de quem está na fila de espera do SUS em Santa Catarina. É o que conta o médico Marcello Lucena, coordenador do Ambulatório Trans de Florianópolis, o primeiro do Estado, criado em 2015. Atualmente só existe outro em São José. Ambos são mantidos pelas prefeituras. Segundo Marcello, os atendimentos psicológicos são o segundo serviço mais procurado. Só ficam atrás das prescrições hormonais — normalmente o primeiro passo na transição de gênero. 

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Com uma equipe composta por médico, enfermeiro, psicólogo e assistente social, o ambulatório é referência em atendimento ambulatorial para pessoas trans na Capital. A sala dentro da policlínica é rotineiramente o ponto de partida quando o assunto é cirurgia transexualizadora. Ali, além de acompanhamento especializado, são preenchidos os formulários de encaminhamento para os procedimentos hospitalares, represados em SC desde 2020, segundo Lucena. 

E essa demora tem um preço. 

— É muito subjetivo o que a cirurgia representa para cada pessoa, mas a gente vê muitas situações em que o não acesso ao procedimento gera muito sofrimento em saúde mental. Às vezes até gerando um risco para pessoa de ideação suicida, de automutilação. Não estou dizendo que isso é um padrão, mas em alguns casos é bastante presente e acaba sendo angustiante fazer esse acompanhamento. Acaba que as pessoas que têm acesso são as com condições de pagar plano de saúde ou “fazer particular”. Quem não tem esse recurso fica desassistida — diz. 

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Florianópolis foi pioneiro na abertura de ambulatório trans (Foto: Lucas Amorelli, NSC Total)

Esse é o mesmo cenário descrito pela coordenadora-geral da Associação em Defesa dos Direitos Humanos (Adeh), Lirous K’yo Fonseca Ávila. Na análise dela, o que se vê em Santa Catarina é resumido em uma palavra: desinteresse. 

— É incrível pensar como uma cirurgia tida como estética é capaz de curar aquilo que está ligado à saúde mental. A gente está falando sobre a necessidade de conseguir convencer o poder público da importância dessas cirurgias, principalmente a de troca de sexo. Temos casos de pessoas que tentam suicídio, de automutilação, que nós precisamos convencer a não fazer isso porque esse órgão precisa estar lá para a cirurgia ocorrer — conta.

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