O significado é de uma saudação em cultos afro-brasileiros, mas o termo Saravá, em Florianópolis, ao menos por uma noite, pôde muito bem ter amplos sinônimos que vão além de um “salve”. É o encontro da arte com a diversidade, que deixou toda uma felicidade latente num cantar, dançar e se esparramar de afeto e sonoridade múltipla, numa noite na SC 401, Norte da Ilha, em que milhares de pessoas guardaram para sempre na memória um show da maior entidade da cultura brasileira: Gilberto Gil.

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O momento ímpar se justifica pela história que Gil viveu por aqui, pelo momento de efervescência cultural no país e pela obra ao longo dos 80 anos de vida. Mas há de se dimensionar o tamanho do festival por todo um conjunto democrático de ações que deixam as pessoas com muita fé por um mundo melhor.

A primeira atração foi a parceria magnífica da banda percussiva feminina Cores de Aidê, de Florianópolis, vencedora de Premio da Música Catarinense, com Doralyce, dona do sucesso radiofônico Miss Beleza Universal, questionando o tal padrão de beleza feminina. A letra teve uma identificação enorme com o público. Resultado: uma locomotiva sonora que passou bonita pelo palco, fazendo todo mundo dançar e refletir.
Nos primeiros intervalos, DJ Góia fazia o aquecimento das próximas atrações com samba e mashups de batidas bem dançantes que iam de Clara Nunes ao funk carioca.

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A segunda banda a se apresentar foi outro combo de explosão sonora com o som instrumental de alta patente da orquestra Nômade, e de um naipe metais pra lá de poderoso. Ainda teve a participação muito especial da ativista e cantora Kaê Guajajara, esperançosa sobre uma nova era na questão da demarcação de terras indígenas no país: “Estamos com bastante esperança sobre este novo modelo que está se instaurando com a chegada do ministério dos povos indígenas, estamos felizes com esta novidade, isso nuca existiu”, disse Guajajara.

A baiana Rachel Reis começou a cantar às 22h30min e fez todo mundo dançar com ritmos calientes misturados a um novo som baiano hoje bem popular na cultura sound system, em que ritmos eletrônicos programados ditam uma métrica sonora deliciosa de ouvir, permeando ora guitarra baiana, ora um afoxé, ora trio elétrico. Fez homenagem a Gal Costa cantando Tigresa, composição de Caetano Veloso. Ela chegou a se despedir, mas o público pediu e ela voltou, agradecendo: “Gente, muito obrigada. É uma honra estar com vocês aqui. Que vibe boa”.

Quando DJ Felipe Martins aquecia o público ávido por Gil, ele mandou uma sequência quente de misturas que ficaram “crocantes” aos ouvidos como Admirável Gado Novo, de Zé Ramalho, ao ritmo do pancadão de funk.

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Eis que Gil sobe ao palco pouco antes da meia-noite! Ele abriu com Tempo Rei, canção de 1984, do LP Raça Humana. O público cantou junto do começo ao fim. “Que bom estar aqui com vocês aqui em “FLOPS”, depois de tantos anos”, disse Gil, após a primeira canção do show, que tinha a filha Nara Gil de backing-vocal, e o filho Bem Gil na guitarra, além do sanfoneiro (ou acordeonista) sergipano Mestrinho, um dos grandes mestres do instrumento no Brasil.

Foi um show que desfilou uma parte significativa da carreira de Gil, todas, do começo ao fim, deixando o público extasiado, pedindo canções e que muitas delas estavam ali no repertório, como “Punk da Periferia” de 1983, anunciada pelo cantor como “Agora vou cantar um rock pra vocês”. De fato é um dos discos mais “rock” dele.

Show teve referência à prisão em Florianópolis, em 1976

Gilberto Gil fez show de uma hora e 40 minutos no Festival Saravá, no Norte da Ilha, em Florianópolis

Ele não deixou passar batida a história de quando foi preso em Florianópolis, no ano de 1976, por porte de maconha no quarto de um hotel, antes de um show que faria na Ilha. Muito mais do que um discurso, falou também sobre o ocorrido em forma de canção. Ele mandou a música Sandra, que foi feita nesta época em que ficou detido por aqui: “Vou cantar uma música que eu não canto faz muito tempo. Foi quando fui preso aqui por causa de maconha. Me colocaram num hospício…. mas as meninas aqui me trataram muito bem”, disse Gil antes de cantar a música, que tem o nome da então esposa dele na época.

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Gil fez a letra porque sentia muita saudade dela, quando isolado num então manicômio da Colônia Santana, em São José, na Grande Florianópolis. Ficou uma impressão de que ele queria falar algo mais sobre esse fato e outras situações políticas no Brasil, mas como ele mesmo disse: “Desta vez quero falar menos, às vezes falo muito nos shows”. E o povo retrucou em coro: “Gil, eu te amo”, derramando muito carinho e afeto pelo artista.

Realce, Palco, Toda Menina Baiana, A Novidade e Aquele Abraço foram algumas das músicas de um set list de um caminhão de hits, com o detalhe de que boa parte destas canções vem dos anos 80 e foram as mais cantadas no festival.

Esbanjou simpatia e mostrou muita energia ao dançar um forró rastapé em Esperando na Janela, composição de Targino Gondim, Manuca Almeida e Raimundinho do Acordeon.

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Não teve bis, o público fez o lendário “Mais um”, mas compreendeu que estava ali um ícone maior da cultura brasileira, e que 1 hora e 37 minutos de show foi para se esbaldar e ficar registrado de que ali foi marcado como algo histórico.

O paraibano Chico César, que assistiu, dançou e cantarolou todo o show do Gil no espaço destinado à imprensa, subiu ao palco às duas da manhã e abriu o show com versos sobre Catolé da Rocha, cidade natal. Teve um coral muito lindo entoado pela plateia em À Primeira Vista e Mama África. Fechou a noite com esplendor.

Foi um festival que deixou evidente em que a acessibilidade (os deficientes visuais, auditivos e cadeirantes tiveram uma atenção especial e redobrada da organização) e a diversidade de estilos e gêneros especialmente respeitadas deram o tom de que, para reunir tanta gente e tudo sair muito bem, é necessária a prática de uma simples palavra: respeito.

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O Festival Saravá chegou à nona edição, deixando um público como se fosse aquele cliente de um restaurante que, mesmo com a barriga cheia do prato principal, não deixaria escapar a sobremesa. Todos ali saíram saciados de arte, mas mesmo assim estariam prontos para uma próxima refeição que o Saravá servir. E isso deixa evidente que não falta apetite sonoro por aqui.

Assista a vídeo do show de Gilberto Gil em Florianópolis

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