Entre os fritz e fridas que se espalham pelo Estado em outubro, o clima português da Marejada tem um charme peculiar, carregado de originalidade. Se lá tem marreco, cuca e flores coloridas, aqui tem renda de bilro, sardinha na brasa e frutos do mar de dar água na boca. Única na temporada de festas a resgatar as origens do povo do Litoral, a Marejada tem um papel que vai além do entretenimento: representa um reencontro com costumes e sabores que se mantêm vivos na memória local.

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– A festa saiu de uma simples estratégica mercadológica, relacionada às festas de outubro, para adquirir um discurso ideológico, de produção de identidade – diz Beto Severino, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP).

A Marejada teve papel fundamental na valorização das tradições portuguesas e açorianas em Itajaí. Embora, segundo o historiador José Francisco Albino, mestre em História Cultural, as raízes locais também tenham influência de outras culturas, como germânica e negra, a escolha de Portugal tem razão de ser: o sotaque local, peixeiro, tem muito do falar cantado e rápido dos portugueses.

É de lá, também, a herança de uma forte relação com o mar. A exemplo dos portugueses, que viram nascer as grandes navegações a partir do Rio Tejo, em Lisboa, em Itajaí as águas do mar e do Itajaí-Açu são o berço de duas das mais fortes e tradicionais matrizes econômicas da cidade: a pesca e o porto.

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– Identidade é uma escolha. Pode parecer ter sido forçada essa identificação porque a escolha de uma festa portuguesa foi política, mas o que esse movimento fez foi evitar a morte de algumas coisas que se percebiam que deveriam permanecer vivas – diz Severino.

Desde que a festa surgiu, há 26 anos, a quantidade de grupos de terno de reis em Itajaí, por exemplo, aumentou. Também se passou a cultivar tradições como o boi-de-mamão nas escolas, e grupos de dança portuguesa se formaram numa tentativa de resgatar os costumes dos antepassados.

Até mesmo o fado, canto profundo e melancólico que evoca o espírito português, ganhou espaço em Itajaí com a cantora Célia Pedro, que mantém viva a musicalidade lusitana:

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– Até a Marejada, eu nem conhecia a música portuguesa – conta a cantora.

Rendas resgatam tradição açoriana

Dos dedos rápidos de dona Erotildes Delfino, 64 anos, nascem tramas carregadas de história. Ponto a ponto as linhas trançadas, tal qual redes de pesca, formam bordados cheios de significado, que remetem às rendas açorianas.

O preferido de Erotildes é o ponto cheio, que lembra uma pétala de flor: difícil e trabalhoso, mas que rende uma beleza sem igual.

– É bom de fazer. Depois que fica pronto, olho e penso: será que fui eu quem fez uma coisa tão linda? – diz a rendeira.

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Dona Erotildes aprendeu a rendar ainda menina. Aos sete anos, já tinha a própria almofada de bordar, quando ainda vivia em Imaruí. Mudou-se para Itajaí há 49 anos, e ajudou a perpetuar uma arte que já vinha sendo esquecida pelas mulheres da cidade.

As filhas de dona Erotildes até tentaram aprender a tecer o bilro, mas desistiram da renda porque o ganho financeiro é pequeno. Mesmo assim, nos últimos anos a rendeira tem sido procurada por pessoas interessadas nos pontos. No momento, são duas alunas – um sinal de que a tradição vem se mantendo:

– Se isso não for levado adiante, no futuro as crianças só vão saber como era feita a renda de bilro nos livros.

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Folclore preservado entre cores e cantigas

Há 20 anos, a musicalidade do boi-de-mamão conquistou o coração do aposentado Silvio José de Mendonça, 69 anos. Quando deu por si, o folclore já fazia parte de sua vida. Hoje, junto com o grupo Cantores da Paz, se dedica a manter vivos folguedos como o Terno de Reis, o boi-de-mamão e a Festa do Divino, que fazem parte do folclore português e açoriano.

– Decidi abraçar para não deixar morrer. Um povo sem raiz é um povo sem história – diz Mendonça.

Guardados no sótão da casa dele, no Centro, personagens como o boi e a gigantesca Bernúncia tomam corpo e ganham luz em época de Marejada. Com o incentivo da festa, que trouxe de volta a tradição popular, as imagens passaram a sair com mais frequência e, hoje, circulam o ano todo – assim como o Terno de Reis, que deixou de ser apresentado somente entre dezembro e janeiro para ganhar as ruas.

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– Em Itajaí temos excelentes músicos e cantores. Penso que precisamos reforçar essa tradição local para trazer o turismo. Eu não recuso nada, para que nossos folguedos tenham divulgação e visibilidade.

Passo a passo danças conquistam os jovens

Os dançarinos são jovens, mas os movimentos que eles reproduzem no palco remetem aos antepassados. As danças portuguesas e açorianas sobrevivem em Itajaí graças à dedicação de pessoas como a professora Graziela Pereira, que há 11 anos convence crianças e adolescentes a soltar o corpo ao ritmo lusitano.

O projeto do grupo Eduxi começou como atividade de contraturno escolar no Caic do Bairro São Vicente. Hoje, mais de 120 crianças em três escolas de Itajaí aprendem, na prática, como se faz uma festa portuguesa.

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– Vou trabalhando a questão cultural e, quando vejo, eles estão envolvidos com o ritmo português e açoriano – diz Graziela.

O trabalho iniciou em 2001, quando foi proposto um desafio: ter crianças para representar a festa. Mas muitos dos alunos que aprenderam a dançar no início do projeto ainda se mantém no grupo oficial da Marejada, que tem 20 dançarinos entre 16 e 22 anos. Nesta edição da festa, pela primeira vez eles se apresentam com música ao vivo, estrelada por artistas itajaienses.