Foi a leitura de um livro aos 25 anos que fez a publicitária catarinense Joanna Burigo se reconhecer feminista. O Relatório Hite de Sexualidade Feminina, de Shere Hite, abriu caminho para uma trajetória que parece estar só começando na vida da criciumense, hoje com 37. A titular do A Casa da Mãe Joanna (casadamaejoanna.com), projeto educacional e de comunicação lançado em 2015 que tem um site como vitrine e para o qual uma variedade de vozes produz conteúdo, se destaca pela capacidade de articulação e eloquência. Entre as regras do site, valores que Joanna propaga: Resista à tentação de dizer para outrem o que elas devem ou não fazer. Discordâncias e diferenças são inevitáveis, mas acreditamos que é possível progredir sem destruir umas às outras.
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Depois daquela primeira leitura e de muitas outras, a publicitária que teve Londres como endereço por oito anos decidiu pelo mestrado em Gênero, Mídia e Cultura na London School of Economics. Na Inglaterra, Joanna também foi cofundadora do Gender Hub, reunião de profissionais do ramo de gênero que oferecem pesquisa e consultoria, e do Projeto Guerreiras, empresa social que estimula a consciência crítica a respeito de preconceitos de gênero através da linguagem do futebol. Recentemente, via Casa da Mãe Joanna, a publicitária produziu para a ONU um livreto pioneiro sobre legislação de violência de gênero para refugiados que será lançado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).
De Porto Alegre, onde mora, pouco antes de embarcar rumo a Florianópolis, onde neste sábado e domingo ministra o curso Novos Olhares e Lugares de Gênero: Você na Sociedade do Futuro no Inspire Cursos, Joanna conversou com a coluna sobre temas bem atuais.
O que atraiu você a esse tema?
Comecei a me identificar com o feminismo meio por acaso quando li um livro que pertenceu a um tio. Eu quis ler porque era dele e acabei me identificando com o discurso e não parei mais de ler sobre o assunto. Foi quando descobri que existia todo um corpo teórico e, depois de dois anos lendo livros e blogs, resolvi fazer um mestrado que ligasse gênero, mídia e cultura. Nunca gostei muito de publicidade, mas sempre gostei do processo de comunicação social. O que me ocorreu quando decidi fazer o mestrado foi utilizar as estratégias da comunicação social para difundir o conceito feminista, que eu ainda acho que é pouco conhecido.
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A discussão sobre a questões de gênero parece aumentar no Brasil, mas ainda há muita desinformação. Qual é a análise que faz desse momento?
A tendência de falar sobre gênero é global. Nos últimos anos a ONU tem sido muito responsável por promover essa agenda. Uma instituição de alcance global tende a ser respeitada, então o discurso tem entrado de cima para baixo nas pautas institucionais. Acho que dentro das instituições, o discurso deixou de ser visto como mimimi, mas no contexto brasileiro, essa perguntar exige uma resposta bem complexa. Minha impressão como profissional do ramo é que, como o discurso é muito novo, ele foi muito facilmente cooptado por setores conservadores da sociedade para ser ressignificado. Os fundamentalistas religiosos, por exemplo, erroneamente chamam isso de ideologia de gênero dando um caráter ideológico a um conhecimento que na verdade é acadêmico, que se posiciona contra a ideologia do patriarcado heteronormativo, ideologia que determina que os lugares de poder sejam ocupados por homens e que o normal é ser heterossexual. O estudo de gênero questiona essas imposições e não é em si uma ideologia. Além das conquistas pelas quais a gente tem que lutar, a gente tem que passar um tempão explicando ao que a gente se propõe, que é a batalha pela igualdade com o pressuposto básico. Nem o feminismo nem o estudo de gênero são ideológicos. A ideologia se impõe, ela não existe além da imposição e o pressuposto do feminismo de gênero é dialético.
Uma polêmica atual relacionada ao tema surgiu da nomeação de apenas homens para os cargos de ministros do novo governo. Muita gente argumentou que o importante é contar com profissionais competentes nos cargos, sejam eles homens ou mulheres. O que você pensa sobre o assunto?
Uma democracia verdadeiramente participativa, que é a democracia que a gente gostaria de viver, é onde todas as pessoas estão representadas. O que parece um pouco cabuloso nessa configuração ministerial é que a gente só vê homens brancos. Se a competência só é enxergada em homens brancos tem alguma coisa errada. Porque a gente sabe que a competência existe em qualquer categoria de humanidade. O que fica claro é que no momento em que a escolha exclui qualquer pessoa que não se parece com um homem branco e essa escolha é atribuída à competência, essa escolha está sendo hipócrita. Esse argumento é uma falácia.
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Você é a favor do sistema de cotas para mulheres, seja na política, seja nos conselhos diretivos das empresas.
Prefiro o termo ação afirmativa à cota, que sempre me parece um favor, uma caridade que a gente está fazendo. Ação afirmativa encapsula uma ideia de que existe uma desigualdade que precisa ser reduzida e ela não vai se perfeita por caridade, ela vai ser feita de forma afirmativa. Estamos afirmando que existe uma diferente e estamos tomando medidas, ainda que sejam provisórias. A desigualdade é a nossa realidade, então acredito que as políticas de ações afirmativas devam ser temporárias, até as coisas se ajustarem. Vai ser muito difícil reverter esse quadro se a gente depender da boa vontade das pessoas.
No curso há um espaço para análise do discurso de séries como Mad Men e Orange is the new black. De que forma essas análises contribuem para o entendimento da questão de gênero?
Os estudos de gêneros se ocupam bastante da seara do simbólico porque a gente entende gênero como uma linguagem. As pessoas tendem a demonstrar, com linguagens estéticas como moda, corte de cabelo, tom de voz e postura a sua identidade. Por isso, entendemos gênero como uma linguagem. Assim, a seara do simbólico é muito útil para nos fazer enxergar algumas coisas que na materialidade do nosso dia a dia talvez a gente não perceba. Mad Med, por exemplo, é uma série muito inteligente que se passa na Nova York da década de 1960 em uma agência de publicidade dominada por homem. Mas ao invés de fazer de conta que sempre foi assim, a série não fecha os olhos para o machismo, mostrando questões de gênero do ponto de vista de quem está levando a pior. Uso esses exemplos da seara do simbólico que podem fazer a gente enxergar certas coisas que se manifestam na vida real.
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Como podemos estar preparados para os avanços que o debate acerca de igualdade traz?
Ouvindo. A melhor maneira de começar qualquer conversa sobre gênero é pedir para que o interlocutor suspenda o que acha que já sabe. Esse vem sendo um dos meus maiores desafios. As pessoas chegam espumando de raiva de mim porque me veem como uma doutrinadora “feminazi” de gênero e no momento que começa a conversar percebe que as ideias que tinham eram bem fantasiosas. O que o mais recebo é: nossa, nunca tinha pensado sobre isso desse jeito. Então, como podemos estar preparados? Com ouvido e mente abertos.