Embora não seja o único exemplo de mudança de entendimento na legislação – nos últimos anos, tivemos alterações no entendimento de crimes de racismo, crimes virtuais, entre outros – a decisão dos ministros do Supremo Tribunal Federal sobre feminicídio é de grande importância para o fim da cultura de violência contra a mulher.
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No último ano, foram realizadas 105.821 denúncias de violência contra a mulher, de acordo com relatório do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Ainda segundo o Ministério, houve uma mudança na metodologia de coleta de dados, o que impede a comparação com anos anteriores.
Um estudo da Rede de Observatório da Segurança apontou que, em 2020, em média cinco mulheres foram mortas a cada dia por crime de gênero. E o Anuário Brasileiro de Segurança Pública indica que, mesmo considerando as subnotificações, aproximadamente 90% dos crimes contra mulheres foram praticados por companheiros ou ex-companheiros das vítimas. O que demonstra a naturalização da violência de gênero.
— Dentro da tradição jurídica brasileira, em razão do patriarcalismo enraizado na sociedade, sempre se deu especial valor à honra do homem, à honra do marido traído, a tal ponto de, em tribunais de júri, a defesa de maridos traídos alegar que o crime foi cometido como resposta a uma situação ofensiva à honra do criminoso. Até alguns anos atrás, essa alegação não era considerada tão descabida. Essa questão tem raízes no Direito Romano e no Direito Português, que consideravam o adultério da mulher um grande problema social – afirma Sandro Cesar Sell, advogado, mestre em Sociologia Política, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Santa Catarina, e coordenador do curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade CESUSC.
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Esse entendimento vem desde o primeiro código penal brasileiro e estava tão enraizado na cultura da sociedade que somente em março de 2021 o STF pôs fim, formalmente, ao uso da tese da legítima defesa da honra, entendendo, por unanimidade, se tratar de uma tese inconstitucional, que vai contra os princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero, previstos na Constituição Federal.
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Posicionamento dos ministros sobre a tese
Para o ministro Dias Toffoli, a tese de defesa da honra imputa à mulher – vítima – a causa da própria morte ou agressão sofrida, e ressalta que a violência contra a mulher é um crime desproporcional e covarde; o ministro Alexandre de Moraes apontou o papel do Estado na repressão de práticas machistas na sociedade, alegando que o Estado não pode ser omisso nestes crimes.
Gilmar Mendes endossou, colocando-se contra o que chamou de “ranço machista”, responsável pela perpetuação da violência de gênero no país, no que foi acompanhado pelas ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber, que pontuaram a urgência de coibir práticas que naturalizam crimes contra a mulher.
— O Direito deve ser instrumento de emancipação e não de submissão dos mais vulneráveis. E continuar a admitir a legítima defesa assassina da honra seria colocar o direito como instrumento de opressão e cúmplice da escalada dos feminicídios. Por isso a importância dessa decisão do Supremo — ressalta o professor da CESUSC, Sandro Cesar Sell.
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Ciências Criminais é um estudo em constante evolução
A anulação da defesa da honra em crimes contra a mulher é um exemplo de mudança recente no viés criminológico estimulada pelas dinâmicas socioculturais. Não cabe às Ciências Sociais punir transgressores nem estabelecer procedimentos de persecução penal, seu papel é o de entender os contextos em que os delitos foram praticados, com base em análise do cenário e dos agentes – delinquente, vítima, sociedade e controle social – para, então, refletir sobre as leis penais.
— Por se tratar de uma Ciência Social, precisamos tratar o Direito a partir de um determinado contexto (econômico, cultural, social, político, religioso). Dessa forma, esse estudo não pode ser engessado, ele está sempre em constante evolução, acompanhando as mudanças de pensamento, de posicionamento e de costumes na sociedade. Por essa razão, os cursos de pós-graduação da Faculdade CESUSC estão sempre atualizados e conectados com as questões sociais, das tendências de pensamento – aponta o advogado e professor Ruben Rockenbach Manente, doutor em Ciências Jurídicas e Políticas, presidente do Instituto Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento e um dos coordenadores do curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade CESUSC.
Por conta do surgimento contínuo de leis penais e processuais penais e, em função disso, da respectiva criação de novas figuras típicas e modificações na forma da persecução penal, é fundamental que profissionais que atuam no campo das Ciências Jurídicas e Sociais se mantenham constantemente atualizados, para que possam interpretar as novas disposições jurídicas à luz da legislação, principalmente, da Constituição Federal.
– Mesmo que não haja necessariamente uma concordância com relação às mudanças no modo como se interpretam as leis, é fundamental que haja uma reflexão para a compreender se determinado pensamento social está ou não de acordo com o ordenamento jurídico. Quando falamos em feminicídio ou em violência contra a mulher, precisamos analisar como o Direito entende esses crimes. A revisão da tese da legítima defesa da honra é um exemplo do que antes era aceito e, hoje, em razão dessa dinâmica social, não é mais aceitável. Refletir sobre essas questões é, também, uma proposta da pós-graduação da Cesusc – aponta Ruben.
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O curso de Ciências Criminais da Cesusc foi pensado para estabelecer uma perspectiva crítica em torno de como construir teoria e práxis jurídica alternativas no campo penal.
Combater ao machismo e reconsiderar questões do patriarcalismo é uma das questões abordadas durante o curso, por isso, há dois anos, entendendo a necessidade de alinhar teoria e prática, a coordenação de Ciências Criminais da Faculdade Cesusc assumiu o compromisso de manter uma paridade de gênero em seu corpo docente.
– Como uma forma de ir além de repensar questões relacionadas à violência contra a mulher, decidimos agir para mitigar danos, e estamos entrando na terceira edição do curso de pós-graduação em Ciências Criminais com disciplinas ministradas por um corpo docente formado por 50% de professoras mulheres e 50% de professores homens – explica o Prof. Dr. Ruben Rockenbach Manente.
Saiba mais sobre a pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade CESUSC
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