O forno já não faz calor. Dele emanavam os 1.200 graus Celsius necessários para transformar a matéria-prima em vidro. Desde a fundação da empresa em 1971, ele só havia parado por 30 dias na enchente de 2008. Coube ao foguista Ari Ribeiro Leite, 39 anos, extinguir o fogo que monitorou por duas décadas. Entre máquinas e esteiras paradas, três caixas de madeira guardam as últimas dúzias de taças de vinho, espumante e copos de cerveja feitas na fábrica, que nem chegaram a receber o corte e o polimento que dão forma à borda. O restante é deserto e silêncio no pátio da Cristal Blumenau, que encerrou as atividades no último dia 5.
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Não foi exatamente uma surpresa. Na década de 1980, auge do setor de cristal artesanal na cidade, três empresas concentravam praticamente toda a produção: Cristais Hering, Cristallerie Strauss e Cristal Blumenau. A fabricação empregava mais de 3 mil pessoas na cidade – hoje o número é de apenas 150. Desde a abertura do mercado para importações, porém, os tempos ficaram cada vez mais difíceis. Em 2009, a Cristais Hering anunciou o fim das atividades, à época com apenas 180 funcionários, sete vezes menos do que os 1,3 mil que chegou a ter nos dias mais brilhantes. Em junho de 2016 foi a vez da Cristallerie Strauss declarar falência e demitir 200 trabalhadores.
Sem a Cristal Blumenau, a cidade não tem mais quem fabrique copos e taças de cristal, produtos que já foram uma das marcas da indústria local e funcionavam até como atrativo turístico e de compras. Das três empresas do ramo que mantêm atividade na cidade, duas, a Di Murano e Vidro House, produzem vasos e artigos de decoração. A terceira do setor, a Cristais Tavares, fabrica somente objetos de decoração e de vidro, como vasos de narguilé – mas não produz cristal. Apenas a Oxford, instalada desde 2010 em Pomerode, ainda faz essas taças e copos na região.
Concorrência, dívidas e salários atrasados
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A Cristal Blumenau vinha com dificuldade para fechar as contas há algum tempo. Chegou a cogitar encerrar as atividades em 2005 e 2013. O advogado que representa a empresa, Rogério Luís Goulart de Lima, cita a concorrência com os produtos importados e as dívidas tributárias como os principais obstáculos para que a empresa continuasse viva. Segundo Lima, as dívidas passariam de R$ 10 milhões. O patrimônio, em um levantamento inicial, foi estimado em R$ 7 milhões – em caso de venda em leilão, o valor tende a baixar.
– A meta agora é liberar os benefícios como seguro-desemprego, levantar o patrimônio, vender e quitar os débitos – explicou.
Os funcionários vinham recebendo os salários de forma parcelada e terminaram 2017 sem receber os vencimentos de novembro, dezembro e o 13º. Uma reunião na sede da Cristal Blumenau na quinta-feira (foto) discutiu como será feita a liberação do seguro-desemprego, já que uma das exigências é a retirada do FGTS, benefício não depositado para parte dos trabalhadores. Os termos de rescisão serão definidos até o final de janeiro. Uma ação coletiva deve cobrar na Justiça os demais valores.
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O cristal está “no sangue” dos trabalhadores
O lapidador Ademir Regueira diz ter o cristal no sangue. Aprendeu o ofício aos 15 anos, na Cristais Hering. Em 2009, viu a empresa que assinou seu até então único registro na carteira de trabalho desativar a produção e foi trabalhar na Blumenau. Hoje, vê o filme se repetir.
Conseguir vaga em uma das duas empresas do ramo remanescentes na cidade é uma esperança para os trabalhadores locais. No caso de Ademir, no entanto, essa possibilidade é remota porque as empresas que ficaram focam na produção de vasos e artigos de decoração, nicho em que a lapidação é atividade pouco utilizada, ao contrário do que ocorria com copos e taças.
– Para continuar na área mesmo, só trabalhando em casa – lamenta.
Declínio vem dos importados e da não modernização
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Vidros e Cristais de Blumenau (Sindicrip), José de Andrade, conta que, como o forno contínuo não pode ser desativado, na época de auge a Cristais Hering chegava a pagar funcionários nos fins de semana apenas para retirar o vidro do forno e jogá-lo fora, por não ter mercado capaz de absorver a produção. Como o setor caminhou de um patamar que hoje soa como ostentação ao momento atual, com as três principais empresas fechadas?
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Para o presidente do sindicato patronal, Antônio Marcos Schroth, dificuldades como o fato de as empresas pagarem Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) apesar de terem atividade praticamente artesanal e a falta de uma diferenciação clara entre vidro e cristal, que informe o consumidor e reconheça o chamado cristal puro, foram apontadas como obstáculos. Outra razão estaria na concorrência com os importados, sobretudo da China e do Leste Europeu. Após a abertura do mercado, eles passaram a ter produtos que, embora sem a mesma qualidade, competem com preços bem inferiores.
No entanto, uma coisa é consenso entre quem acompanha a trajetória das empresas: o principal problema está na gestão e na não modernização das fábricas. Schroth avalia que dívidas e a falta de profissionalização e investimentos foram os pecados capitais. Enquanto no método artesanal são necessárias 10 pessoas para produzir 700 peças por dia, na indústria do exterior esse volume é alcançado em uma hora de trabalho de máquinas.
Empresas remanescentes apostam no mercado de decoração
Nem só de fragilidade vive o setor de cristais em Blumenau. Se por um lado as tradicionais empresas da década de 1980 fecharam as portas, por outro as remanescentes apostam no mercado de decoração para manter os produtos requisitados no mercado. A Cristais Di Murano, por exemplo, já nasceu, em 1999, com um perfil diferente das companheiras de ramo. Nada de produzir copos, taças ou jarras. O foco é a produção de vasos e peças grandes – de maior valor agregado – usadas para compor decorações de luxo. Com essa estratégia, a empresa conta com 46 funcionários e cerca de 1 mil peças produzidas ao mês. O diretor da Di Murano, Marcos Paulo Cavalli, até delimita certa separação entre a empresa e o setor mais tradicional de cristais.
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– No fim acaba sendo a mesma matéria-prima, mas mercados diferentes. A gente se destacou pela identidade do produto, quem vê um cristal nosso já reconhece e quer aquele produto. Diferente do negócio de copos, que é algo mais engessado e mundial – compara.
O setor é tão relevante para Blumenau que a cidade possui até um museu para mostrar detalhes da produção artesanal do cristal. O Glas Park é mantido pela empresa.
– É muito importante para a divulgação da marca, porque recebemos visitas de turistas, visitantes de cruzeiros que estão no Litoral, mas ajuda muito culturalmente também, porque mantém viva a tradição da fabricação do cristal – explica Cavalli.
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Oxford adquiriu patrimônio da Strauss em dezembro e projeta investimentos no setor
Apesar do simbolismo do fechamento da última empresa que fabricava copos e taças de cristal em Blumenau, na região a situação pode não ser tão apocalíptica quanto parece. Enquanto as empresas mais antigas fecham, outros investidores ainda creem no potencial desse mercado, que hoje parece juntar os cacos. Tradicional fabricante de porcelana, a Oxford, de Pomerode, entrou no ramo de cristais em 2009 e obtém bons resultados com a venda justamente das linhas de peças de bar e mesa.
Em dezembro de 2017, a Oxford comprou o prédio, as máquinas e a marca da blumenauense Strauss, tradicional fabricante de cristais fechada em 2016. Antônio Marcos Schroth, que além de presidente do sindicato patronal é diretor da Oxford, não antecipa qual será a estratégia da empresa, mas acredita que em um mês a companhia anuncie novos investimentos no setor de cristais.
Pelo menos outros dois grupos de investidores também negociam para produzir na cidade: um deles em estágio inicial e outro com produção prevista para iniciar já em abril. Há quem aposte que até mesmo a lacuna dos copos e taças lisas de cristal seja preenchida em breve.
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Como ocorre na fabricação, será preciso lapidar as estratégias e a gestão para corrigir imperfeições que levaram as indústrias ao atual momento. E a esperança de ver ressurgir a força dos cristais blumenauenses pode inclusive beber da fonte que já ajudou um vizinho de mesa a reconquistar o protagonismo junto aos consumidores.
– Não é o fim, existe espaço para novas ou outras empresas que já estão no ramo. Cinco anos atrás, dizia-se que o setor de cerâmica e porcelana tinha acabado. De lá para cá, novas empresas entraram no mercado e agora vivemos realidade de crescimento. Isso aconteceu a partir do momento que as empresas conseguiram mostrar que os produtos brasileiros são diferenciados em qualidade e principalmente em design. O caminho é ser reconhecido investindo em nosso diferencial, nas nossas marcas – aconselha Schroth.
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