A farinha de mandioca fina e branquinha de Santa Catarina acompanha a chef Daniela Narciso, paulistana que cresceu em Florianópolis, por viagens pelo mundo inteiro. A profissional formada em Turismo e Hotelaria pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali) se especializou em gastronomia na California Culinary Academy, escola americana afiliada da famosa da Le Cordon Bleu, e ganhou o mundo levando a culinária brasileira para os quatro cantos do globo.
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Daniela está de volta à capital catarinense e celebra o lançamento do livro “Farofa”, que dissemina o conhecimento sobre este prato, que está na mesa das famílias brasileiras independente de classe social ou poder aquisitivo e que carrega muita memória afetiva, além de trazer um pouco dos costumes e tradições de cada região do Brasil.
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A obra, da Editora Senac São Paulo, tem coautoria do chef Danilo Rolim e foi lançada na 1ª Bienal Virtual do livro de São Paulo, em dezembro de 2020. O livro traz a história da farofa, com as diferentes matérias-primas e os métodos de preparo, desde a época pré-cabralina até a chegada dos portugueses no Brasil e as posteriores adequações, com o uso de novas tecnologias e costumes dos povos que passaram a habitar o país.
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As receitas, desenvolvidas após uma pesquisa de mais de dois anos pelos chefs Daniela e Danilo, estão divididas por categorias: Farofas Básicas, Farofas Simples, Farofas Mistas, Farofas para Rechear, Paçocas, Farofas de Farnel, Farofas Doces, Farofas Funcionais e Parentes da Farofa. A chef, que formou vários profissionais e deu consultoria para diversas empresas, faz uma ligação do livro com a história profissional, assim como a farofa e o papel secundário em algumas refeições.
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Daniela, que sempre esteve nos bastidores de produções de conteúdo para grandes marcas, se apresenta na autoria desta obra trazendo muito das raízes, com receitas inspiradas nas tradições lageanas, da família paterna, e com parte da pesquisa feita em engenhos da Ilha de Santa Catarina. Em entrevista, ela conta um pouco mais da trajetória profissional e sobre o lançamento do livro.
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Como surgiu a ideia de fazer um livro sobre farofa e a história da farinha no Brasil?
Eu já tinha uma demanda e já trabalhava com a produção de conteúdo, conceitos e receitas para marcas como Melita, Hershey’s, Nestlé. Eu e meu sócio, Danilo Rolim, coautor do livro, ficávamos o dia inteiro na cozinha e sempre fazíamos nosso almoço, daí sempre era uma briga para ver se era farofa de milho ou mandioca (risos). Sou aqui de Santa Catarina e farofa para gente só pode ser feita com uma farinha, a de mandioca, bem fininha e branquinha – inclusive todas as viagens que fiz pelo mundo, e todo vez que eu vinha para Floripa eu saía com um carregamento. Eu brinco: “quer achar a Daniela? É só achar um rastro branco pelo caminho”.
Sou igual João e Maria soltando o rastro de farinha pelo chão. Para o Danilo, meu sócio, que tem família no interior de São Paulo, a farinha é a de milho. Foi nessas discussões, que dividi com ele o desejo de escrever um livro e ele falou: “porque você não escreve um livro sobre farofa?”. Eu achei que já existia algo sobre o tema, começamos a pesquisar e não encontramos nada. Como sou muito de pesquisar e analisar conceitos culturais e sociais e gastronômicos, comecei a questionar porque a farofa está sempre em segundo plano, porque ela é acompanhamento.
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A verdade é que nem sempre foi assim, se você pegar os tropeiros e bandeirantes, tinha farofa na marmita como prato principal. E a gente como brasileiro tem mania de dar mais valor para o que vem de fora – ou tinha, porque as coisas estão mudando – então deixamos a farofa, um produto tipicamente brasileiro, em segundo plano, comemos o arroz o feijão, a carne e a farofa fica depois nessa sequência.
Quanto tempo vocês levaram para produzir o livro e como foi o trabalho de pesquisa, já que não existia nenhum material especifico sobre a farofa?
Ficamos dois anos pesquisando e uma das primeiras coisas que fiz foi vir para cá – Florianópolis – com um fotógrafo. Eu queria acompanhar todo processo de produção da farinha de mandioca, então acompanhei o plantio, o processo da colheita. O Beto Andrade, da tradicional família de engenhos do Sambaqui, faz uma farinhada que a mandioca é plantada em um terreno cedido para a comunidade de pescadores da região e eles se reúnem e fazem o plantio, a colheita, descascam e fazem a torra até o dia da farinhada.
Vim acompanhar esse processo em maio de 2018, e nós já estávamos começando a escrever o livro. Fiz contato com produtos de farinha da região, artesanais e industriais, e aos poucos fomos fazendo contato com produtores do país inteiro. Reunimos também receitas de chefs famosos que amam farofa, mas brinco que a decisão mais difícil do livro foi definir quantas receitas iriamos colocar porque é algo quase infinito, é praticamente como uma combinação alfanumérica, não caba nunca. E resolvemos estabelecer capítulos para o livro e receitas que comtemplasse possíveis variações.
As receitas do livro são assinadas por esses chefs?
Na verdade, conversamos com muita gente, mas optamos por não usar receitas assinadas por outros chefes, no meu primeiro livro “Pois Sou um Bom Cozinheiro” – com curiosidades gastronômicas da vida e obra de Vinícius de Moraes – fiz isso, mas nesse eu queria que as receitas fossem nossa, para testarmos tudo. Eu sempre fiquei muito nos bastidores durante minha vida profissional, trabalhei com consultoria para chefs e restaurantes e também como editora fantasma. Meu trabalho nunca pôde aparecer, eu escrevi para muita gente famosa, mas não posso dizer que a receita tal fui eu que ajudei a criar porque fui contratada para aquilo.
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Então decidi que nesse livro, assim como a farofa, que nunca aparece, dessa vez seria um projeto meu e do meu sócio. E aí é a grande junção do meu trabalho e dessa minha experiência e de tanto trabalho de pesquisa. Acho que tanto eu como a farofa merecíamos (risos).
A farinha, e consequentemente a farofa, possuem uma relação com tradições regionais e também com a memória afetiva de cada canto do país, de que forma o livro apresenta isso, e como mostra a relação com Santa Catarina, onde estão suas raízes?
No capítulo “farofa para rechear”, trazemos uma receita de tainha recheada que é algo que ninguém nunca imaginou, elevamos a receita, que é praticamente como é feita por aqui, para um outro patamar (confira a receita aqui). Tem também um capítulo para “paçoca”, onde conto a história da paçoca de pinhão, que também é uma receita da minha família paterna, que é de Lages. Minha família é muito grande, meus avós tiveram 13 filhos, então passávamos as férias de inverno em Lages.
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Tem outra história de família que aparece no capitulo “farofa de farnel”, que são aquelas farofas que são servidas como refeição. Nas férias de verão, meu avô descia a serra em comboio e a minhas tias preparavam uma galinha com farofa e nos parávamos no meio do caminho com a família em uns oito carros, e muitas crianças — tenho 32 primos irmãos — então parava todo mundo para fazer o piquenique com farofa. No fundo, todos temos uma receita ou memória afetiva com algum tipo de farofa e pra mim é um das comidas que mais lembro e que mais me deixa feliz.
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A farofa tem essa questão de ser algo tradicional, mas também se adaptou e circula em outros campos da gastronomia, como na molecular.
Sim, trago no livro uma receita de farofa doce feita com a fruta liofilizada – que passou por um processo de desidratação em baixa temperatura – em que explico que podemos tanto transformar a fruta liofilizada moída como uma farofa, ou ainda, apresenta-la de uma forma diferente e inusitada.
O livro tem uma fotografia muito bonita, como foi a produção dessas imagens?
Como trabalhei muito na área de produções de livros, uma das minhas formações é food styling, que é a produção da comida para a foto. Nesse livro, todas as fotos foram idealizadas e produzidas por mim. Fiz questão de fotografar em um vidro preto para que ela se destacasse, optei por não usar colheres ou panelinhas, para que esses outros elementos não aparecessem mais do que a farofa. Então esse também foi um cuidado para valorizar a farofa.
Algo interessante é que a farofa é um produto legitimamente brasileiro e que não é consumido em outros lugares do mundo.
Temos um capítulo que chamamos de “parentes da farofa”, onde apresentamos o que tem no mundo que parece farofa, mas não é. A farofa é uma das poucas coisas que é 100% brasileira. Tem até uns depoimentos engraçados, como do chef Laurent Suaudeau, que associou a farofa com areia: “A primeira impressão foi não entender esse polvilhar de farinha que secava a boca”, conta ele em um trecho do livro. Hoje ele adora, sempre que viajo daqui para São Paulo levo farinha pra ele. Até aproveitando essa história, fiz uma foto no livro que recriei uma praia com três tipos de farinha, apresentando farofas de frutos do mar.