Cada vez que vê o Fiesta de Ariane Pires Floriano Aguirre, 48 anos, estacionar diante de sua residência carregado de alimentos, a dona de casa Ana Marli Oliveira dos Santos, 52 anos, nem sabe se ri ou chora.
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Com os armários vazios, as telhas de zinco repletas de furos e as tábuas que revestem seu quarto desabando sobre a cama, a moradora de Agudo contempla os sacos de arroz e feijão sendo descarregados como alívio para a incerteza cotidiana que se instalou na residência desde a tragédia da boate Kiss, que matou seu filho de 18 anos.
– Foi Deus quem te mandou aqui hoje, porque eu não tinha nada para dar para as crianças – emocionou-se, ao receber uma das entregas.
Compartilhando uma realidade enfrentada por pelo menos 30 famílias, Ana Marli ainda depende de doações para se manter após o incêndio que devastou suas vidas. Além de perder o filho, Thailan de Oliveira, que havia ido pela primeira vez à Kiss, a mãe viu a renda familiar despencar com a ausência do jovem, que tinha o maior salário da casa.
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Como seu marido, Olinto Souza dos Santos, 73 anos, foi aposentado por causa de uma isquemia e perdeu a visão por diabetes, o trabalho de Thailan numa fruteira e seus bicos com conserto de computadores eram cruciais para o sustento do lar, onde moram mais três irmãos.
– Quando me falaram do incêndio, nem me preocupei, porque era uma boate de gente fina. Mas uns amigos tinham emprestado o dinheiro do ingresso para ele – lamenta a mãe.
Quem carrega a cesta básica montada com doações vindas de diferentes origens não se trata de uma voluntária qualquer. Ariane também perdeu um filho dentro da boate Kiss, e é com uma foto do cabo do Exército Rogério Floriano Cardoso, 26 anos, estampada no vidro retrovisor do veículo, ao lado da frase “Saudade Eterna”, que leva os donativos. No caminho, encontra gente que precisa de comida, por vezes de remédios, quase sempre de um abraço.
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– As pessoas pensam que só tinha playboy lá dentro, mas não é assim. No início, vieram muitas doações, mas agora já estão faltando, tem muita gente que precisa. Se cada um fizesse um pouquinho, tudo melhorava. O mundo todo melhorava – acredita Ariane, que na última terça-feira vestia a farda do filho e uma camiseta com seu rosto ao visitar novamente a casa de Ana Marli para entregar os mantimentos.
Desde que a tragédia começou, há seis meses, a consultora de vendas roda até 300 quilômetros por dia para levar solidariedade a quem perdeu mais do que ela. Para essas famílias, aquele 27 de janeiro foi apenas o início de um drama que se repete diariamente.
– A sensação é de que todos os dias a gente acorda no mesmo pesadelo. Ajudar é dividir a dor, não fica tão pesado. Acho que era isso que meu guri ia gostar que eu fizesse – raciocina Ariane, que tomou para si a tarefa de distribuir os alimentos que chegam à associação de familiares e sobreviventes, mesmo não integrando mais formalmente a diretoria da entidade.
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Nas visitas às famílias, Ariane leva mais do que farinha, açúcar, biscoitos. Distribui abraços, divide sentimentos comuns com outras mães e pais que vivem a mesma angústia. Ao chegar à casa de Ana Paula Porto Costa, 40 anos, em Santa Maria, para entregar a quarta cesta básica do dia, na terça-feira, foi recepcionada já com lágrimas no portão.
Em depressão pela perda da filha Paola, Ana Paula parou de fazer as faxinas que complementavam a renda familiar. A jovem de 19 anos trabalhava em uma loja e ganhava R$ 800 por mês, mais do que o salário do pai, Luiz Alberto, que é auxiliar de topografia.
As lembranças atormentam os pais, que revivem as cenas daquele dia a toda hora. Naquela noite, a filha havia se arrumado para a festa e, depois de sair de casa e alcançar o portão, deu meia-volta.
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– Ela voltou e disse que queria dar mais um abraço. Disse: “Se eu morresse hoje, eu morria feliz” – lembra a mãe, enxugando o rosto.
Cada um tem uma história. E um drama à parte. Para o técnico em telefonia Jorge Nunes, 50 anos, uma das dores adicionais é não ter conseguido sequer prestar as homenagens fúnebres à filha.
– A pedra pra botar no cemitério até hoje não conseguimos. A camiseta com o rosto dela também não… Não tinha como pagar – diz ele.
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Uma das consequências pouco visíveis da tragédia é que o abalo emocional dos pais tem levado à perda de seus empregos, o que amplifica o drama. Com estresse pós-traumático, o auxiliar de montagem Claudson Epifânio, 40 anos, padrasto da vítima Crisley Saraiva de Freitas da Palma, 23 anos, passou a ter medo de sair de casa e, quando saía, não tinha ânimo para voltar.
Com perda de memória e dificuldade para dormir e se concentrar em outra coisa que não fosse aquele dia – quando percorreu os hospitais e fez o reconhecimento da enteada na fila de corpos empilhados no ginásio municipal -, ele só conseguiu trabalhar dois dias inteiros em um mês. A situação chegou a tal ponto que a saída foi fazer um acordo para deixar o trabalho em uma vidraçaria, recorrendo ao seguro-desemprego, o que fez a renda cair de R$ 1 mil para R$ 678.
Para pagar as contas, ele também precisou vender o Monza 89 comprado semanas antes da tragédia, pelo qual pagaria 10 prestações de R$ 500. Sua mulher, a diarista Nara Lice Saraiva Pedroso, 41 anos, também diminuiu o ritmo de faxinas por conta do abalo emocional.
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– Eu não gosto de pedir, me sinto mal – ressente-se Nara, que, como outras famílias, está recebendo cestas básicas para alimentar a família, que inclui outra filha com problemas neurológicos, de 18 anos, e uma neta com síndrome de Down.
Diante do somatório de perdas, a solidariedade é o que tem feito a diferença. E já permite que algumas famílias comecem a vislumbrar melhores condições de vida, como a do jardineiro Vlademir Antônio Vargas, 52 anos, de Itaara. Ele perdeu duas filhas na tragédia e desde então está criando as duas netas, de quatro e sete anos, ao lado da mulher, Iracema, que ficou com sequelas de uma isquemia, e de outra filha adolescente.
Apesar das dificuldades, ele encontra motivos para sorrir. Com auxílio da comunidade, começou a construir uma casa nova de três quartos e dois banheiros, que substituirá a moradia feita com puxadinhos de tábuas irregulares e tábuas de zinco onde vivem. A obra, erguida no mesmo terreno, é o símbolo do recomeço.
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– Eu já tinha fé em Deus, agora tenho mais – agradece o jardineiro, que angariou mais de R$ 5 mil em uma conta aberta para recolher doações.
Ex-funcionária da boate ainda deve à funerária
LEGENDA Natalícia trabalhava na boate Kiss
Foto: Anderson Fetter, Agência RBS
As contas que não param de chegar em nome da filha Janaína Portella, 19 anos, vítima da Kiss, são um tormento a mais na vida de Natalícia Moraes da Silva, 53 anos, que trabalhava na boate, e do marido, Alcemar Moraes, 53 anos.
Naquele dia, Janaína tinha ido substituir a mãe na boate, porque Natalícia, com pressão alta, não estava em condições de passar a noite lavando copos e recolhendo garrafas.
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– Ela foi no meu lugar. Disse: “Mãe, eu não vou deixar tu ir, senão eu vou ter que te buscar no caixão” – conta a mãe, que toma diariamente 26 comprimidos para enfrentar a depressão e outros problemas de saúde e é acompanhada por psicólogos da rede municipal.
Para poder cuidar da mulher, o vigilante Alcemar também teve de reduzir sua jornada de trabalho, o que fez a renda cair pela metade. Atualmente, ganha R$ 320. Ele se aflige com as dívidas. Só em uma loja, a enteada tinha quase R$ 500 em contas até o final do mês – que agora ele terá de assumir. Sequer a dívida do funeral ele conseguiu pagar.
– Ainda estamos devendo R$ 1,3 mil da funerária. O enterro custou R$ 2 mil, já pagamos R$ 700 – calcula.
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Luta na Justiça por remédios
LEGENDA Fátima ainda sente consequências do incêndio
Foto: Anderson Fetter, Agência RBS
Desempregada, Maria de Fátima Nascimento, 32 anos, tinha ido até a boate Kiss para buscar uma vaga de trabalho na segurança. Entrou à 1h06min do dia 27 de janeiro, e ainda tem a sensação de estar lá.
Atingida por barras de ferro quando tentava sair, Fátima sofreu lesões na coluna. Com perda de sensibilidade crescente na perna esquerda e nos pés, ainda realiza exames para compreender a extensão dos danos. Os olhos ficam avermelhados cada vez que lembra do que aconteceu. Em depressão, teme perder a visão e os movimentos.
– Estou pedindo para Deus que não me tire os olhos e as pernas. Pode até retirar meus braços, mas as pernas e os olhos não – aflige-se.
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Apesar de receber tratamento pelo SUS, ela precisou entrar na Justiça em busca de dois medicamentos receitados que não constam da tabela oferecida pela rede pública. Já perdeu 18 quilos por não conseguir comer. Espera há quase um mês, ainda sem decisão. Órfã de pai e de mãe, não tem fonte de renda, e conta com ajuda de amigos para se sustentar. Precisa de tudo, mas o que ela mais sente falta é de afeto.
– Enquanto os pais procuravam por seus filhos naquele dia, tudo o que eu mais queria era um abraço dos meus pais. Às vezes eu encontro outros pais de vítimas e eles me dão um abraço, aí eu me sinto um pouco melhor – consola-se.
Confira o vídeo: