Madrugada de 30 de julho de 2021. Na Ilha de Santa Catarina, a segregação espacial imposta pela geografia que aparta moradores foi derrubada pela massa de ar gelado.
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Fez um grau centígrado.
Severa como nunca enquanto sequência de dias, a onda de frio atingiu de forma implacável os mais expostos. Se foi uma surra em quem estava nas camas de cimento do asfalto — como moradores de rua — também foi um açoite nos que vivem nos morros de Florianópolis. Houve até formação de geada, fato raro em uma cidade litorânea.
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Lá em cima, nos altos da Rua José Boiteux, no Maciço do Morro da Cruz, a família Lopes usou roupas, papelão e jornal para tapar as frestas nas paredes da casa de cinco cômodos. É o lado desumano do frio extremo que atinge Santa Catarina nesta semana. No lugar vivem duas mulheres idosas. A matriarca Adelaide, 95 anos, está acamada, enquanto Neusa, 59 anos, convive com problemas de saúde física e mental.
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São ainda mais três moradores adultos, uma criança de quatro anos e um bebê de 11 meses. Fora do conceito de sem-teto e tampouco de moradores de rua, os Lopes ocupam uma casa que retrata o quadro de precarização das condições de moradia de milhares de pessoas em Florianópolis.

Úmida e espremida por uma barreira que pode desabar, a residência está próxima de um mato que torna o lugar mais inóspito:
— À noite, aqui, é congelante. Mal o sol vai embora e a gente começa a tremer —conta Rosimar Passos, 42 anos, casada e mãe das crianças.
Para amenizar a situação, Rosimar coloca os meninos para dormir com ela e o marido:
— Nos esquentamos um com o calor do corpo do outro.
Já durante o dia, a tática é diferente:
— Quando tem farinha, a gente faz pão e o forno deixa a casa mais quentinha.
“Se chove, pinga dentro, se venta, treme tudo”
Não são apenas os mais velhos que sentem o frio cortante. Letícia Lopes, 17 anos, estudante do 9º ano, também reclama:
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— Lá pelas 4 da tarde já tenho que colocar roupa quente. Aqui não se leva uma vida fácil: se chove, pinga dentro de casa; se venta, treme tudo — conta a adolescente que faz curso de Inglês pela internet e sonha em se tornar comissária de bordo.
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A casa, explica, foi comprada há uns 30 anos pelo avô, vindo da região de Lages. A ideia era como tempo fazer melhorias, mas a situação financeira foi se agravando e Justino Lopes faleceu sem realizar o desejo de uma moradia mais digna.
O inverno extremo coincide com a pandemia que impactou a vida da família. Rosimar trabalhava como empregada doméstica, mas perdeu o emprego. Agora, cuida do filho menor e aguarda por uma vaga na creche onde o de quatro anos já frequenta.

O marido dela, o músico Israel Lopes, 41 anos, perdeu a renda dos shows e apresentações em bares e restaurantes. Arrisca-se em pequenos serviços de pintura. A família depende de doações de cestas básicas. Nestes dias chegaram também alguns agasalhos. A única renda fixa da família é um salário de Adelaide.
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Letícia demonstra carinho para com a avó que a criou. Devido aos problemas de saúde, inclusive de visão, a idosa só se levanta para ir ao banheiro:
— A gente dá o braço, mas a vó dá um tapinha como se não precisasse de apoio. Ela vai no tato — diz.
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Linha divisória entre o morro e a cidade
Chega-se na casa dos Lopes pisando os 365 degraus de uma escadaria construída há cerca de 45 anos. Do alto, é possível se avistar a movimentada Avenida Mauro Ramos, a qual contorna o lado oeste do maciço.
Há quem compare Mauro Ramos à Faixa de Gaza, como referência às restrições impostas pelo estado de Israel ao povo palestino. É o que sugere a professora Luciana de Freitas, militante do Movimento Negro Unificado (MNU): trata-se de uma espécie de linha divisória entre o morro e o resto da cidade.
Ao se protegerem do frio com papelão e folhas de jornal os Lopes dão razão à professora e também moradora da comunidade.
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Milhares assim como os Lopes
Em Florianópolis, cerca 17 mil famílias estão inscritas no programa habitacional da prefeitura. A maioria vive de aluguel. Assim como os Lopes, muitos morando em áreas de vulnerabilidade.
O município entregou dois conjuntos habitacionais nos últimos anos: na Ponta do Leal e no Jardim Atlântico. Mas reconhece que é preciso investir em moradias populares.

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