Por Fernanda Volkerling/especial
Antes de mais nada, a ideia desta reportagem não é comparar humanos com animais, tampouco humanizar outras espécies e muito menos defender a equivalência dos lugares simbólicos destinados às mulheres responsáveis pela tutela de crianças e bichos.
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Não se trata de colocar panos quentes sobre todas as dificuldades, estigmas e cargas sociais que as mães enfrentam na atualidade; ou fazer parecer que cuidar de um animal – ou mesmo de muitos – se assemelhe à experiência de gerar, adotar ou educar uma criança. A apropriação do termo, neste caso, é mais por aproximação do que por reivindicação.
Partindo de uma tendência que se apresenta na realidade, queremos falar sobre o que pensam e sentem as mulheres que sustentam uma opção de não ter filhos (o que é, ainda hoje, uma atitude questionadora frente ao senso comum da maternidade como destino natural) e, paralelamente, entregam grande parte de suas vidas ao cuidado e à convivência com os animais.
Para elas, o amor e a dedicação dispensados são tão fundamentais, permeando cada pensamento e decisão cotidiana, que os bichinhos se tornam muito mais próximos do que a palavra “dona” ou “proprietária” pode alcançar.
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Família completa
Em setembro de 2016, a Nielsen Media Research publicou o resultado de um estudo sobre a presença de animais domésticos em residências brasileiras, revelando que os “pets são os novos filhos e recebem cuidados mais saudáveis”. Isso porque, de acordo com a pesquisa, há pelo menos um cachorro vivendo em 46% dos lares brasileiros e pelo menos um gato em 18% deles, com destaque para a região Sul, onde a proporção é ainda maior. Além disso, em 70% das residências onde existem animais, não mora nenhuma criança.
– Quando converso com alguém que não me conhece, e a pessoa pergunta se tenho filhos, eu respondo que não. Aí tem uma pausa, um silêncio de dois segundos, e então eu digo: mas tenho filhos peludos! – conta entre risadas a maquiadora Ivana Caracas – E eu não fico nem um pouco constrangida com isso, tá tudo bem ser assim – completa.
Aos 44 anos, ela e o marido compartilham um apartamento no Centro de Florianópolis com seis gatos: Mimi, Noir, Jolie, Bibi, Sofie e o simpático Zé, um laranjinha que adora fazer pose para a câmera – todos adotados ou resgatados de situações de risco, ao longo de 10 anos.
Ao entrar na residência, é impossível não notar a presença dos bichanos, ainda que todos eles corram para se esconder do visitante: arranhadores, brinquedos, caixas de papelão e redes de proteção nas janelas fazem do ambiente um lar adaptado ao máximo para o conforto tanto de gatos quanto de humanos.
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A rotina da família também é esquematizada em função dos gatos. O orçamento tem que levar em conta a alimentação, a saúde e o bem-estar dos felinos. Tem um que gosta de comer isso, o outro aquilo; a mais velha, Mimi, tem diabetes e precisa receber insulina duas vezes ao dia. É preciso pensar em todo mundo! Além disso, Ivana conta que está cada vez mais difícil viajar – da última vez que foi a Curitiba, teve que voltar antes do previsto, com saudade dos gatos.
– Hoje não consigo ver minha vida sem os gatos, seria muito sem graça. Mesmo que eu perca todos eles, vou continuar adotando, porque quero dar a esses animais maravilhosos a chance de serem amados e cuidados como merecem – pontua Ivana, que já passou pela experiência de perder o seu primeiro companheiro felino, Valentim, após 14 anos de convivência. De acordo com ela, a ideia de ter filhos nunca foi um projeto nítido para o casal, que está junto há 10 anos – e nisso o tempo foi passando. Hoje eles se sentem completos com a bicharada correndo pela casa, fazendo graça e dormindo junto na cama.
– Consideramos que temos uma família: nós dois e os seis gatos. A gente faz tudo pensando neles, na saúde deles, no bem-estar deles. Acredito que, no sentido do amor e do cuidado, é da mesma maneira – descreve.
Missão: resgate
Se, por um lado, cada vez mais pessoas buscam a companhia dos animais de estimação, muitas ainda não compreendem o grau de responsabilidade que ter um bichinho envolve. Animais devolvidos ou abandonados nas ruas são uma triste realidade. Todos os dias, centenas de cães e gatos deixam de ser “interessantes” para muitas famílias, seja por estarem velhos e doentes, por apresentarem um comportamento mais agitado, por não caberem na nova casa ou por outro motivo qualquer.
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Para a jornalista Luciana de Moraes e a fotógrafa Mariana Boro, os animais são o oposto de um mero capricho: trata-se de uma missão desafiadora e transformadora. Há 10 anos, quando se conheceram, nenhuma delas compartilhava o lar com pets. Hoje são 14 na casa onde moram, no bairro Rio Vermelho, em Florianópolis: 10 cachorros e quatro gatos, entre eles a caçulinha Udi, que adora deitar no colo das visitas – fora os outros sete cachorros disponíveis para adoção que elas mantêm em hospedagens temporárias. A maioria possui algum tipo de condição especial, como idade avançada, limitações físicas ou comportamentos erráticos.
– Os animais foram chegando de várias maneiras. Alguns nós recolhemos da rua, outros tiramos de abrigos onde não tinham chance de ser adotados. A gente vai até onde pode, e muitas vezes onde não pode, pra ver eles bem. Temos muito amor por eles – revela Luciana.
A começar pela casa, quase tudo na vida do casal foi planejado para comportar os animais, especialmente os cachorros, em função do espaço físico adequado. Quando iniciaram os resgates e adoções – elas moravam em um apartamento –, logo perceberam que precisariam de um lugar maior. Foi quando decidiram encontrar uma casa com quintal para onde pudessem levar todos os cães e gatos, imóvel que hoje também funciona como home office para as duas.
Ao longo dos anos, elas mudaram totalmente o jeito de viver por causa dos bichos. Além de muito trabalho para sustentar as necessidades de todos, tiveram que aprender a lidar com a energia e a personalidade de cada um; e também a encontrar uma brecha no dia a dia para fazer e pensar em outras coisas. Em função de tudo isso e da dedicação, elas avaliam que hoje não existe espaço, nem físico e nem emocional, para pensar em filhos – mas não descartam a possibilidade de isso mudar futuramente.
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– Tem quem diga que a mulher precisa ser mãe para se sentir completa. Eu não acho. Já me sinto completa – afirma Mariana.
Da rua para o quarto
O estreitamento da relação entre humanos e animais de estimação, a ponto de estes serem considerados como membros da família (conforme já apontava uma pesquisa da Consumoteca, realizada com o público brasileiro em 2014), é algo recente. Com a urbanização das cidades e a compartimentação dos espaços, cães e gatos, por exemplo, deixaram de ser vistos apenas por sua utilidade como vigilantes ou caçadores, passando a desempenhar cada vez mais a função de companhia.
Desta forma, a convivência mais próxima levou a uma transformação na maneira como os humanos se relacionam com essas espécies: em vez de serem tomados em série, como exemplares mais ou menos idênticos de uma mesma categoria, eles conquistaram cada vez mais individualidade e características singulares – uma espécie de personalidade única para cada animal.
Esta mudança intensificou o cuidado e o investimento no bem-estar dos pets, e impulsionou o crescimento exorbitante de todo um setor da economia voltado aos animais de estimação, dos alimentos aos consultórios veterinários. Cada vez mais serviços essenciais prestados para humanos ganham também versões para os pets, tais como planos de saúde, nutrição profissional, babá, entre outros. Ao todo, formou-se um mercado que movimenta anualmente mais de US$100 bilhões no mundo todo.
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Na casa da assessora jurídica Tatiana Medeiros, uma chupeta de plástico sobre a bancada da cozinha pode levar um estranho a imaginar que ali mora um bebê. Na verdade, o acessório foi comprado na esperança de que a gatinha Marieta, de poucos meses de vida, parasse de “mamar” na orelha das pessoas. Mas não funcionou – afinal, gatos são gatos. Na vida de Tatiana, o bem-estar dos seus seis felinos é prioridade.
Ração de boa qualidade, arranhador, caminhas fofas e caixa de areia limpa são itens básicos. Mas o cuidado vai muito além da fofura e dos ronronados: quando um deles, o Nestor, teve um problema de saúde e precisou ser internado, ela largou tudo o que estava fazendo para cuidar dele.
– Os gatos são uma companhia que me faz ter vontade de chegar em casa todos os dias, pra ficar com eles. Me preocupo muito em saber se estão bem – conta Tatiana. Aos 30 anos, e casada desde os 25, ela conta que o plano inicial era ter filhos logo, mas, com a chegada dos gatos, tanto ela quanto o marido foram mudando de ideia – é claro que uma coisa não substitui a outra, mas, no final das contas, a proliferação de gatinhos pelo apartamento passou a ocupar muito tempo e dedicação.
– A gente já tinha até pensando em nomes para os filhos, mas voltamos atrás. Hoje não existe mais essa ideia. Quando perguntam, a gente diz que não quer ter – revela Tatiana, salientando que essa decisão pode não ser definitiva. Talvez ainda chegue o dia em que a chupeta encontrará seu verdadeiro dono…
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