Deitado “de perna pra cima” na cama da suíte no apartamento onde mora na lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, Ney Latorraca atendeu à ligação do Diário Catarinense na véspera de embarcar para Florianópolis. Ele está em turnê pelo país com o musical Vamp (releitura da novela homônima, de 1991), que se despede da Capital de SC neste sábado em duas sessões, às 17h e às 21h, no Teatro do CIC.
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– Eu mordo mesmo! – garante o ator, ao contar que é comum a plateia pedir para que o vampiro Vlad crave os dentes em seus pescoços.
Aos 74 anos de vida e 68 de carreira – estreou ainda criança em uma radionovela –, o santista radicado no Rio de Janeiro desde pequeno pertence a uma geração de atores criada em uma era anterior à superexposição em redes sociais, quando o talento contava mais do que o número de curtidas. E, detalhe importante, antes que os artistas se cercassem de assessores para planejar e controlar qualquer declaração pública.
Por isso, entrevistá-lo é uma delícia: bastam poucas perguntas para ele quebrar o gelo com espontaneidade e humor. A seguir, os principais trechos da conversa:
Você falou que depois da encenação de Vamp iria se aposentar, ainda mantém
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essa decisão?
Não, mudei de ideia, era só para chamar a atenção (risos). Eu estava com a macaca naquele dia, estava com raiva das pessoas. Fui passar o som, o som estava péssimo, tinha coisa pifada no ensaio, de repente eu falei “vou largar isso aqui tudo de uma vez”.
“É um fenômeno”, diz Ney Latorraca sobre Vamp – O Musical, que chega a Floripa
Deve ter sido uma experiência bem ruim mesmo, porque você inclusive justificou a aposentadoria dizendo que não iria expor sua “decrepitude”…
Nada, agora tô eu gatinho, tô fofo! Setenta e quatro anos com um corpinho de 14 (risos).
Você já tem algum projeto em vista após a peça?
Há um documentário sobre mim, ainda na fase de pesquisa. Quem está fazendo é o (crítico de cinema) Rubens Ewald Filho.
Está previsto para quando?
Ah, essas coisas quando começam já viu, né? Até viabilizar… É difícil conseguir verba, cultura fica em último plano sempre – tá aí esta coisa triste que aconteceu com o Museu Nacional para confirmar. Ser artista em um país que não tem nenhum tipo de memória é dureza.
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As acusações contra um suposto uso político-ideológico da Lei Rouanet tornam o fomento às artes e à cultura ainda mais complicado?
O problema é a generalização. Em todas as profissões e áreas, há pessoas sérias e há aproveitadores. Mesmo com defeitos, a Lei Rouanet ainda é o principal instrumento que a gente tem para viabilizar nossos trabalhos. O que também não garante nada: entrei com um projeto para fazer uma peça do (dramaturgo romeno Eugène) Ionesco, As Cadeiras, e não consegui apoio. Aí banquei do meu próprio bolso. Acontece. O que acho que falta ao Brasil é o mecenato.
Mas aí você se refere a mecenato à vera mesmo, não patrocínio em troca de renúncia fiscal, correto?
Como tem nos EUA: empresários que apostam no cinema, no teatro. O (empresário da comunicação Assis) Chateaubriand fez isso no Masp (Museu de Arte Moderna em São Paulo), reuniu as grandes fortunas de São Paulo para comprar as obras e doá-las ao museu. Na Broadway, em Nova York, você vai ver as grandes fortunas nas listas de agradecimentos daqueles musicais.
O que você faz no seu tempo livre?
Eu ando. Oito quilômetros todos os dias.
Onde?
Aqui no Rio, na Lagoa Rodrigo de Freitas. As capivaras, os caras que vendem coco, todo mundo me conhece. Também gosto de ficar em casa, cuidar das minhas coisas, da minha vida, de fuçar meus livros.
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Quando você percebeu que seria ator?
Desde o dia que nasci. Sou filho único de um casal muito pobre, então eu tinha que fazer minhas graças para trazer comida para casa. Comecei a me exercitar (nas artes cênicas) com isso.
A situação ficou muito ruim na sua casa quando os cassinos onde seus pais trabalhavam foram proibidos no Brasil?
Eles eram do meio artístico. Eu tinha um ano quando os cassinos foram proibidos. Acabou tudo, ficou todo mundo desempregado, foi uma tragédia. Nasci e me criei nesse meio, meu padrinho de batismo foi o Grande Otelo.
Você nunca cogitou seguir outra profissão?
Talvez eu fosse jornalista.
Sério?
(Irônico) Sim! Jornalista ganha muito bem, é respeitado, viaja muito, sempre de primeira classe, os melhores hotéis, é uma loucura (risos)! Na verdade, faço essa relação com o jornalismo porque, se você é um bom ator, você tem um lado de contar histórias, de você relatar.
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De sua estreia até hoje, os quesitos para identificar um bom ator continuam os mesmos?Continuam. É a mesma coisa. Podem ter mudado as escolas, o temperamento, a pontualidade, de não querer bater texto, chegar em cima da hora. Mas ator é ator, sempre haverá bons – inclusive jovens. Sou totalmente contra esse saudosismo de “antigamente é que era bom”.
Há jovens atores ótimos por aí, mas têm que dar chances para eles começarem. Eu já fui um jovem ator também. Fazer sucesso é uma coisa, ficar para sempre na história do teatro e da televisão é que é difícil. Aí tem que ter talento. E engolir sapos também (risos).
Está mais delicado fazer humor hoje?
Está mais triste. O que está aí sendo saudado como moderno a gente já fazia na TV Pirata.
Um quadro como TV Macho, em que você e Guilherme Karan ironizavam o machismo, teria lugar na programação atualmente?
Não, hoje é outra época, outra esfera: a da caretice total e da falta de glamour (risos). O planeta inteiro ficou amargo, acho. É momento, depois vem outra fase. Estamos vivendo uma transição, como está é que não pode ficar.
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Como você avalia que a entrada de plataformas de streaming ou programações on demand impacta na teledramaturgia?
Tem que ter tudo, abrir o campo mesmo. É saudável essa concorrência. Há séries maravilhosas, geniais, como aquela sobre a rivalidade entre (as atrizes) Bette Davis e Joan Crawford (Feud: Bette and Joan, exibida pelo canal por assinatura Fox em 2017). Gosto muito quando contam histórias de personagens, como a da rainha também (The Crown, exibida pela Netflix, com a terceira temporada em produção).
É isso que você assiste na TV hoje?
A coisa que mais amo é filme de suspense, que é sempre a mesma história (risos): uma mulher que está cansada de morar na cidade grande, tem um filhinho e o marido sumiu. Ela se muda para uma cidade pequena com o garotinho, compra uma casinha, chega do trabalho e começa a ouvir barulhos. É tudo igual!
E mesmo assim você assiste?
Adoro, acho uma bobagem! Chego a suar frio (risos)! Se bobear, é sempre com a mesma atriz, aquela Jennifer Lopez.
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Você acha que a classe artística deveria participar mais ativamente da discussão política, como a sua geração, que fazia passeatas contra a ditadura militar e em favor das eleições diretas para presidente?
Acho que os atores de hoje participam, só que não estão tão unidos no mesmo grupo, pela mesma causa. A gente recebia uma ordem, “todos na Praça da República” (em São Paulo), e ia todo mundo.
Não seria porque naquele tempo estava mais claro contra o quê todos deveriam lutar?
Verdade, naquela época ninguém queria a ditadura, ponto. Hoje está mais difuso, estranho. Cada um pode fazer, falar o que quiser; o que não pode é a gente brigar entre a gente, isso é feio. Agora, por exemplo, não vejo nenhum político citar a palavra “cultura” nos debates. A partir do incêndio no museu, todos vão começar a falar, irão lá na frente do museu gravar os programas e tudo.
Ainda faz sentido falar em direita e esquerda?
(Enfático) Não, não. Isso faz parte do passado. Que esquerda? Que direita? Acho isso até meio bobinho. O que eu acredito é que tem que aparecer gente nova, parece capitania hereditária, desde que nasci são sempre as mesmas pessoas. Só muda o cabelo, cada vez mais pintado (risos).
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Isso desamina você?
Ah, desanima, é uma encheção de saco. Você quer ver uma pessoa nova aparecer, mesmo que ela erre depois, sei lá.
Mas só o novo pelo novo não seria também algo meio inócuo?
(Debochando) Não é isso, bobinho! Acho que a gente está precisando de bons técnicos, de uma boa mão de obra para o país. Sabe quando aparece alguém falando e você acha “que coisa maravilhosa, bem novinho”? Não dão chance! É sempre velharia, família, Deus. Estão voltando com tudo.
Qual a maior vantagem de já ter passado dos 70 anos?
Não entrar em fila para pegar avião. E sentar no metrô também, é ótimo! Sempre pego lugar quente, porque havia outra bunda sentada ali (risos).
E a desvantagem?
Ser chamado de “senhor”, odeio! Sou uma criança.
Como você lida com a fama nestes tempos em que qualquer um com um celular é um paparazzo?
Primeiro, é diferente: fama é uma coisa, eu sou uma estrela pop. O nível é outro, estou lá em cima. Quando as pessoas olham para mim, elas não estão vendo só o Ney Latorraca, tem uma história atrás. Elas estão lembrando do Quequé, do Mederix, do Vlad, do Barbosa (personagens interpretados por ele ao longo da carreira), de Beijo no Asfalto, da Ópera do Malandro.
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Você não se sente ameaçado pelas subcelebridades, então?
De jeito nenhum, isso tem vida curta
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