A falta de vagas em creches e escolas de Santa Catarina pôs a Justiça do Estado como a terceira do país que mais recebeu processos relacionados ao direito à educação na primeira metade de 2022. O cenário foi identificado pelo NSC Total a partir de dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e, conforme especialistas ouvidos pela reportagem, sinaliza um problema já crônico de mães e pais que se acostumaram a ter de ir ao Judiciário para tentar garantir um direito básico aos filhos.

Continua depois da publicidade

Receba notícias de Santa Catarina pelo WhatsApp

Entre janeiro e agosto de 2022, período com dados reunidos até aqui pelo CNJ, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) teve protocoladas 1.964 ações relativas a violações do direito à educação, estando atrás apenas dos tribunais de São Paulo (6.410) e do Rio Grande do Sul (3.413).

Entre os processos catarinenses, mais da metade (1.079) tratava especificamente de ausência de vaga na educação básica pública, direito previsto pela Constituição Federal e reafirmado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)​. O TJSC informou que o volume ainda subiu 77% até o fim de 2022, para 1.909 ações, número ao qual o CNJ ainda não teve acesso.

O cenário pode ser ainda mais alarmante do que o consolidado, já que a categorização mais específica das ações passou a ser prevista pelo CNJ em 2021 e tem sido incorporada, aos poucos, à rotina dos tribunais. Antes disso, desde 2008, esses casos eram genericamente abarcados pelo assunto “direito à educação”, junto a outros processos que tocam o tema.

Continua depois da publicidade

A saga pela vaga

Os números da Justiça não indicam de qual fase escolar cada processo trata. Ainda assim, entre quem trabalha com educação, é consenso que as dificuldades de acesso se concentram nas creches e na pré-escola. Nos últimos anos o problema avançou sobre outras etapas escolares em algumas cidades, em especial nas metrópoles.

— Em 10 anos que estou aqui, posso te dizer que a situação só piorou. Antes, a dificuldade era só voltada à creche e à pré-escola. Mas a procura por escola já aumentou de forma absurda, e, no ensino médio, passou a ter problema com vaga no ano passado — diz a conselheira tutelar Indianara Trainotti, que atua no Norte da Ilha de Santa Catarina, região com maior demanda em Florianópolis.

Ela diz que o roteiro tem sido o mesmo no começo de cada semestre letivo. As famílias recém-chegadas à região não conseguem encontrar prontamente vagas nas unidades locais, mas mantêm expectativa até o fim do cronograma formal de matrículas das secretárias de Educação e dos próprios colégios, à espera de alguma desistência que permita a inscrição dos filhos. Quando já não há indicação disso, buscam o Conselho Tutelar, que propõe a ida ao Ministério Público estadual (MPSC) para judicializar o caso.

— Agora o Ministério Público atende até por WhatsApp, e não era assim antigamente. No ano passado, teve família que foi à Justiça em março, e a criança só conseguiu a vaga em junho. Ficou fora da escola nesse período todo — conta Trainotti.

Continua depois da publicidade

Ela diz que, neste começo de 2023, a procura pela Justiça deve se intensificar a partir da próxima quarta-feira (8), quando as aulas serão retomadas, as eventuais vagas remanescentes poderão ser preenchidas, e quem se vir de fora já terá perdido as esperanças. Até o último dia 23 da janeiro, no entanto, quando foi aberto período formal de matrículas da rede estadual, o TJSC já havia recebido 53 ações judiciais por ausência de vaga.

O motorista de aplicativo Wilson Oliveira viveu parte dessa saga no começo do ano passado, quando trocou Belém, capital do Pará, pelo bairro dos Ingleses, no Norte de Florianópolis, com a esposa e os dois filhos. A mais velha, Dana, precisava de matrícula no 1º ano do ensino médio, enquanto o mais novo, Juan, iria ao 3º do fundamental. Os pais precisaram pernoitar em frente à escola Intendente José Fernandes para garantir vagas de última hora:

— Eles sempre direcionavam para o centro da cidade, dizendo que não havia vaga aqui. Aí comunicaram que iriam ver quem desistiu e abrir chance de matrícula em uma segunda-feira. No domingo, ao meio-dia, a gente já estava na fila em frente à escola. Eu revezei com minha esposa e pensei que seria pouca gente na fila, mas, quando deu 17h, já estava dobrando. Foi uma situação até humilhante, porque a gente mora em um dos estados mais ricos do Brasil, mas que tem essa deficiência de escolas — conta Wilson.

Ele diz que não chegou a ir à Justiça, mas ouviu relatos de pais que fariam isso e precisou se contentar com uma inscrição da filha mais velha em aulas noturnas, o que ele e a esposa não queriam.

Continua depois da publicidade

A origem da judicialização e a busca por soluções

A conselheira tutelar e o morador dos Ingleses têm uma percepção parecida sobre a causa do problema: uma explosão demográfica desacompanhada de mais escolas e creches que atendam a nova demanda.

O advogado Edelvan Jesus, presidente da Comissão de Direito da Criança e do Adolescente da seccional catarinense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), concorda com a tese e diz que a Justiça tem sido sobrecarregada hoje por um fenômeno que deveria ser suprido por políticas públicas.

— O gestor público deve garantir o acesso à educação sem necessariamente haver uma decisão judicial, porque o acesso à educação é um direito, e um direito não se discute judicialmente. Se há uma busca pelo Poder Judiciário para que ele seja exercido, é porque há uma certa anomalia do ponto de vista do acesso — diz.

— Se existe um processo migratório para uma região, a oferta de serviços públicos deve ser ampliada nela. As ações governamentais têm que estar pautadas neste movimento, e, muita vezes, a gente vê a dificuldade do poder público em perceber isso e se planejar — completa.

Continua depois da publicidade

Alinhado a essa percepção, o promotor de Justiça João Luiz de Carvalho Botega, que coordena o Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude e Educação (CIJE) do MPSC, diz que o órgão atua hoje para impulsionar políticas de ampliação de vagas e, assim, retirar a discussão pulverizada nos tribunais.

— A gente tem tentado olhar para as questões mais estruturais da política pública, para o financiamento, para o cumprimento de metas, para irmos lá na raiz do problema, e não apenas nos sintomas. A família que procura o Ministério Público é um sintoma de uma doença que está na política pública que não foi executada — afirma o promotor.

Entre as principais práticas do MPSC para isso, Botega diz que o órgão intensificou o acompanhamento das metas do Plano Nacional de Educação (PNE), fez coro à aprovação do ICMS da Educação na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) no ano passado e tem colocado ações coletivas à frente de processos individuais.

— A nossa orientação institucional é que promotor trate dessas questões no plano coletivo, salvo situações excepcionais que justifiquem uma atuação individual, para que todas as crianças que eventualmente tiveram a vaga negada tenham ela assegurada, e não apenas aquelas das famílias que procuraram o Ministério Público. A ideia é que o promotor chame o município para resolver de maneira estrutural — explica Botega.

Continua depois da publicidade

A defensora pública Júlia Gimenes Pedrollo pondera, no entanto, que as famílias têm, ainda assim, mobilizado processos individuais, já que as ações coletivas costumam ter tramitação mais demorada, ao passo que a necessidade da vaga é urgente. Coordenadora do Núcleo da Infância e Juventude, Direitos da Pessoa Idosa e da Pessoa com Deficiência na Defensoria Pública de Santa Catarina (DPSC), ela acrescenta que o cenário deve se manter assim em 2023.

— A partir do momento em que a pessoa tem esse direito, mas há a negativa do Estado em fornecê-lo, ela acaba procurando o Judiciário. E quanto mais persiste a omissão em se estruturar políticas públicas, mais aumenta o volume de demandas individuais — explica.

— Isso tende a continuar, porque o déficit de vagas é muito maior do que o planejamento que a gente vê de construção de prédios e de contratação de professores — completa.

O MPSC diz que, em 2021, ano com estimativa de dados mais recente, as cidades catarinenses tinham necessidade de criar mais 61.258 vagas só para cumprirem a meta dos planos municipais de educação de ter cada uma delas ao menos 50% das crianças com idades de zero a três anos nas creches. Isso deveria contemplar não só os alunos da fila de espera, mas também propor uma busca ativa junto às famílias que sequer procuraram pelo serviço.

Continua depois da publicidade

O que dizem as autoridades

A responsabilidade sobre a abertura de vagas é dividida entre os três federativos. O PNE prevê que os municípios dividam a responsabilidade sobre o ensino fundamental com o estado e tratem das creches e pré-escolas, inclusive para crianças menores de três anos, o que o Supremo Tribunal Federal (STF) reforçou em setembro do ano passado, ao julgar um caso de Santa Catarina que teve repercussão geral.

O governo estadual cuida, prioritariamente, do ensino médio. Já a União deve prestar assistência técnica e financeira para viabilizar o acesso à educação.

Sobre o caso de Florianópolis, a prefeitura reforçou que a cidade conta com um intenso fluxo migratório, motivado, segundo o prefeito Topázio Neto, pelos indicadores de qualidade de vida atrativos para novos moradores. Ele diz ainda que, em resposta a isso, tem se esforçado a cada ano para ampliar o número de vagas em todas as fases escolares da educação básica.

“Em 2017, a Rede Municipal de Ensino dispunha de 594 turmas e hoje, 2023, possui 714 turmas, o que reflete uma ampliação, portanto, de 120 turmas”, informou , em nota, destacando que, nesse intervalo de seis anos, ampliou sua capacidade para atender mais 3 mil estudantes somente no Norte da Ilha.

Continua depois da publicidade

A Secretaria Municipal de Educação (SME) listou ter inaugurado no período — dividido com a antiga gestão Gean Loureiro (União Brasil), de quem Topázio foi vice-prefeito — cinco unidades de ensino (em Ponta das Canas, Tapera, Ingleses e Ratones, sendo duas neste último bairro) e ampliado outras dez já existentes (em Canasvieiras, Rio Vermelho, Ingleses, Vargem do Bom Jesus, Serrinha, Costeira, Costa de Dentro, Lagoa da Conceição, Jurerê e Itacorubi).

Destacou ainda que constrói hoje uma escola no Rio Vermelho e tem uma outra na região em processo de licitação, além de tocar os projetos de um colégio na região continental e de um outro na Costeira.
A gestão Topázio também pontuou oferecer vale-transporte integral para alunos que só consigam vaga a mais de cinco quilômetros de casa e disse se colocar à disposição das famílias (respondendo dúvidas pelo e-mail diped@sme.pmf.sc.gov.br) e dos órgãos de fiscalização.

“As ações da Secretaria trilham caminhos para que seja assegurada a oferta e o desenvolvimento de práticas curriculares comprometidas com a melhoria da qualidade social do ensino”, completou.

Já o governo estadual informou que, sobre a situação específica de Florianópolis, ajuda o município com a construção de salas modulares no Norte da Ilha. A Secretaria de Estado da Educação (SED) acrescentou que garantir vagas aos estudantes é uma prioridade.

Continua depois da publicidade

“[A SED] trabalha em um regime de colaboração com os municípios para a garantia das vagas em todo o Estado. Nos casos em que os alunos precisam ser matriculados em escolas mais distantes, eles têm direito ao transporte escolar gratuito”, reforçou.

Leia mais

SC tem 28 escolas públicas investigadas por falta de água potável

SC terá sistema de avaliação para premiar professor; sindicato resiste