Vivek usava um lápis de olho bem marcado para afastar o mau-olhado, mas ainda assim o pequeno menino de um ano que vivia em um vilarejo de cabanas de barro cheias de gente foi vítima do maior mal da Índia: a desnutrição.
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Seus pais pareciam estar fazendo tudo certo. A mãe ainda dá de mamar no peito. A família tem seis cabras, acesso a leite fresco de búfala e um pequeno depósito repleto de centenas de quilos de trigo e batatas. A economia do estado onde vive tinha crescido mais rapidamente que a de qualquer outro do país. Sua mãe contou que ele comia bem, mas que foi levado quatro vezes aos médicos que diagnosticaram a desnutrição. Pouco antes de Vivek nascer em uma paisagem verde com búfalos pastando, próxima à fronteira com o Nepal, sua família teve acesso à eletricidade.
Então, o que fez o menino ficar desnutrido?
Essa é a pergunta que tem sido feita sobre crianças de toda a Índia, onde um longo boom econômico fez pouquíssimo para reduzir as altas taxas de desnutrição e raquitismo, que acabam com déficits mentais e físicos que irão persegui-las pelo resto de sua vida. Agora, um conjunto crescente de estudos científicos sugere que Vivek e muitas das 162 milhões de crianças com menos de cinco anos que estão desnutridas no mundo sofrem menos com a falta de comida do que com a falta de saneamento.
Assim como a maioria das pessoas de seu vilarejo, a família de Vivek não tinha banheiro e o distrito onde vivem possui a maior concentração de pessoas defecando ao ar livre no país. Como consequência, as crianças são expostas a um coquetel de bactérias que as deixa doente, impedindo-as de manter um peso saudável, não importa quanta comida consumam.
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– Os corpos dessas crianças roubam energia e nutrientes do crescimento e do desenvolvimento do cérebro para priorizar o combate às infecções causadas pelas bactérias. Quando isso acontece durante os dois primeiros anos de vida, as crianças ficam raquíticas. O mais assustador é que a perda de peso e de inteligência são efeitos permanentes – afirmou Jean Humphrey, professor de nutrição humana na Faculdade de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg.
Há dois anos, a Unicef, a Organização Mundial da Saúde e o Banco Mundial lançaram um importante relatório sobre a desnutrição infantil concentrado exclusivamente na falta de comida. O saneamento não foi levado em conta. Agora, autoridades da UNICEF e de outras importantes organizações de caridade afirmaram em entrevistas que acreditam que a falta de saneamento possa estar por trás de cerca de metade dos problemas de raquitismo do mundo.
– A descoberta da conexão entre o raquitismo e o saneamento básico está começando a ganhar destaque. Neste momento, tratam-se apenas de hipóteses, mas isso tudo é animador e empolgante, em vista de seu impacto potencial – afirmou Sue Coates, chefe de água, saneamento e higiene da UNICEF Índia.A pesquisa acabou se espalhando por muitas organizações de ajuda e nutrição ao redor do planeta, já que ajuda a resolver um grande mistério: por que as crianças indianas são muito mais desnutridas do que as de países mais pobres na África subsaariana?
Crianças criadas na Índia têm maiores chances de desnutrição do que crianças da República Democrática do Congo, do Zimbábue ou da Somália, os países mais pobres do mundo. O raquitismo afeta 65 milhões de indianos com menos de cinco anos de idade, incluindo um terço das crianças nas famílias mais ricas do país.
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A falta de correlação entre renda e desnutrição é tão impressionante que muitos economistas concluíram que o crescimento econômico praticamente não possui relação com a redução da desnutrição.
Metade da população indiana, ou ao menos 620 milhões de pessoas, defeca ao ar livre. Embora essa parcela tenha caído um pouco ao longo da última década, uma análise do censo revelou que o rápido crescimento populacional gerou um número inédito de pessoas afetadas por dejetos humanos.
Em Sheohar, por exemplo, um programa de construção de banheiros realizado entre 2001 e 2011 fez o total de casas sem banheiro passar de 87 para 80 por cento, mas o crescimento populacional levou a exposição a dejetos humanos a crescer 50% no mesmo período.
– A diferença na média de altura entre crianças africanas e indianas pode ser explicada quase exclusivamente pela diferença na concentração de fezes a céu aberto. Existem muito mais pessoas que defecam ao ar livre na Índia próximas a crianças ou a suas casas, do que em qualquer outro país do mundo – afirmou Dean Spears, economista da Escola de Economia de Déli.
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Todos os anos, o raquitismo não apenas contribui para aumentar o número de mortes de crianças com menos de cinco anos, mas também as que sobrevivem sofrem com déficits cognitivos, tornando-se mais pobres e doentes do que crianças não afetadas por ele. Além disso, elas podem enfrentar maiores riscos de doenças na vida adulta, como o diabetes, ataques do coração e derrames.
– O problema do raquitismo na Índia representa a maior perda de potencial humano em qualquer país na história, afetando 20 vezes mais gente na Índia do que há casos de HIV/AIDS em todo o planeta – afirmou Ramanan Laxminarayan, vice-presidente de pesquisa e políticas da Fundação da Saúde Pública da Índia.
A Índia tem se tornado um país cada vez mais arriscado para as crianças. O saneamento básico e a qualidade do ar estão entre os piores do mundo. Doenças parasíticas e infecções como tuberculose – frequentemente ligadas à falta de saneamento – são as mais comuns. Mais de um quarto das mortes de recém-nascidos ocorre na Índia.
Outros países em desenvolvimento deram passos enormes na melhoria do saneamento. Apenas um por cento dos chineses e três por cento dos habitantes de Bangladesh defecam ao ar livre, se comparados com metade dos indianos. As atitudes podem ser tão importantes quanto o acesso a banheiros. A construção e a manutenção de dezenas de milhões de banheiros na Índia custaria bilhões de dólares, um valor que muitos eleitores não desejam pagar, conforme revelou uma pesquisa recente, segundo a qual muitas pessoas preferem defecar ao ar livre.
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Durante décadas o governo indiano tentou resolver os problemas persistentes de desnutrição do país, distribuindo grandes quantidades de alimentos subsidiados. Porém, alimentos mais abundantes e de melhor qualidade não foram capazes de reverter o raquitismo precoce, conforme mostram estudos.
A Índia gasta atualmente cerca de US$ 26 bilhões por ano com programas de alimentação e emprego, mas menos de 400 milhões na melhoria do saneamento básico – uma relação de 60 para um.
– Precisamos reverter completamente essa relação – afirmou, Laxminarayan.
A falta de alimentos ainda é um fator importante para a desnutrição em algumas crianças, e diversos pesquisadores acreditam que o papel do saneamento tem sido supervalorizado.
– No Sudeste Asiático, um fator importante que leva ao raquitismo é a qualidade da dieta – afirmou Zulfiqar A. Bhutta, diretor do Centro Global de Saúde Infantil no Hospital de Crianças Doentes de Toronto.
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Estudos estão sendo realizados em Bangladesh, Quênia e Zimbábue para avaliar a parcela do raquitismo que pode ser atribuída à falta de saneamento.
– Trata-se de 50%? 90%? Essa é uma questão que vale a pena responder.
O Dr. Stephen Luby, professor de medicina da Universidade de Stanford, à frente de um estudo em Bangladesh, espera poder revelar seus resultados em 2016.
– Enquanto isso, acredito que todos concordamos que criar os filhos em um ambiente cercado de fezes não seja uma boa ideia.