Talvez elas não apareçam nas estatísticas, mas percorrem o mesmo caminho de agressões físicas e psicológicas das mulheres mapeadas pelos órgãos públicos, vítimas da violência doméstica. Suas queixas não estão nos Boletins de Ocorrência e nem no Disque 180, do governo federal. Mesmo para as que procuram ajuda, o cenário é caótico. A falta de integração entre os dados deixa o Estado em um limbo que dificulta o diagnóstico do problema.

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Santa Catarina ocupa a 25ª posição no ranking nacional do Disque 180 – Central de Atendimento à Mulher. Em 2013, foram 8.254 atendimentos. O serviço presta somente orientações a mulheres que precisam de ajuda. A ideia é que ainda neste ano passe a ser integrado às delegacias especializadas, para que possam ser feitas denúncias. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Estado, foram instaurados 11.687 inquéritos de violência doméstica em Santa Catarina em 2013.

A busca por informações sobre o tema no Estado mostra que não há um mapeamento da situação. A dificuldade na obtenção de estatísticas e as diferenças entre os números fornecidos mostram as falhas do setor. Conforme a SSP, por exemplo, as delegacias especializadas de Florianópolis e de São José tiveram em, 2013, 624 e 584 inquéritos instaurados a respeito do tema, respectivamente. Porém, os delegados destas unidades afirmam que somente em Florianópolis teriam sido 1.050 inquéritos e em São José, 606. Quando questionados sobre a razão das diferenças os órgãos não souberam responder. No cenário nacional a situação não se mostrou diferente. A Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) não tem números específicos em relação ao problema nos Estados brasileiros.

As informações da SSP mostram que a violência contra a mulher em SC ainda cresce. Em 2010, o número de boletins de ocorrência por ameaça em âmbito doméstico foi de 18.200, passando para 20.487 em 2012. Apenas 44% dos mais de 2 mil boletins por estupro resultaram em inquérito policial instaurado, em 2012. Na 7a edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, SC apareceu como o terceiro Estado com o maior número de estupros. São 40 casos para cada 100 mil habitantes.

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A dificuldade em obter dados e construir estatísticas fez com que a deputada estadual Ana Paula Lima, apresentasse em plenário o projeto que criaria o Observatório da Violência Contra a Mulher – uma ferramenta para facilitar o trabalho de compilação de dados e que ajudaria a formular políticas públicas contra essa prática. Atualmente, o projeto 0122.0/2013 tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Assembleia Legislativa.

A deputada observa que as delegacias não são especializadas, atendendo também a violência contra crianças, adolescentes em conflito com a lei e as mulheres. Não há dados precisos sobre o número de delegacias, casas de abrigos e centros de referência de atendimento a mulher em situação de violência, nem um órgão que centralize as informações. E os boletins de ocorrência não são padronizados.

Mulheres revelam como eram os companheiros

O Diário Catarinense esteve em uma abrigo de proteção a mulheres vítimas de violência localizado na Grande Florianópolis. O depoimento de duas vítimas, que não podem ser identificadas por medidas de segurança, denota o sofrimento das mulheres que enfrentam o problema.

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Logo no início da conversa uma delas não consegue conter o choro. Conta sua história de horror rapidamente, para que o pesadelo termine logo. Ela já esteve no mesmo abrigo, no ano passado. Se curou das feridas deixadas pelo companheiro, mas voltou para ele. No começo deste ano, após mais uma forte agressão, saiu de casa definitivamente. Ela se apaixonou logo que o conheceu. Bonito, educado, gentil, parecia o homem perfeito. O namoro logo engatou. Oito meses depois, descobriu que ele bebia e usava drogas. Levou a primeira surra.

– Ele me bateu e me trancou no quarto. Fiquei lá por dias até saírem os hematomas. Ele só abria a porta do quarto para jogar a comida – conta a vítima.

Ela queria fugir, mas temia pelos filhos – do casamento anterior. Queria trabalhar, mas ele a batia e a acusava de ter um amante. Assim suportou a relação por seis anos, tempo em que tiveram um filho.

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Em uma sexta-feira, ele estava drogado, desferiu chutes e pontapés nela e partiu para cima das crianças. A mulher tentou impedir e foi atingida por um chute no braço. Depois, ele a trancou no quarto. Quem a libertou para que fugissse foi o filho de 10 anos. Antes, olhou para o filho de um ano que dormia no berço. Machucada, procurou um posto de saúde, mas não queria contar para o médico o ocorrido. Os hematomas, além de um braço e uma costela quebrados, porém, denunciaram o problema. O profissional acionou a polícia e o Conselho Tutelar. As crianças foram retiradas de casa e estão em um abrigo até que a mãe, levada a uma casa de proteção, consiga reencaminhar a vida.

– Ele me ameaçava, me trancava, guardava uma arma dentro de casa. Ele é totalmente transtornado. Esfaqueou o vizinho que ligou pra polícia enquanto eu apanhava. Não fugia porque achava que não iria conseguir. Mas hoje vejo que consigo – diz.

No mesmo abrigo estão outras duas mulheres. Mãe e filha, ambas grávidas, passam pelo mesmo sofrimento. Após um relacionamento conturbado de três anos, a matriarca sabe que só a morte do seu algoz vai poder libertá-la.

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– Espero não encontrá-lo nunca mais ou que ele morra. Ele não quer tratamento. Se morresse seria um grande alívio – fala sem pensar.

O forte rancor da mulher reflete as várias agressões que sofreu. Grávida de cinco meses, apanhava do companheiro, viciado em crack.

Quando o conheceu, ele se destacava na igreja que frequentavam. Dava palestras e fazia trabalho voluntário. Gentil e bondoso, se apresentava como ex-drogado. Depois de um relacionamento curto, mostrou a verdadeira face.

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::: Onde procurar ajuda

>>> Abrigo em São José

Mantido por uma família adventista, o local atende mulheres que sofreram violência doméstica. São oferecidas 20 vagas, sendo 10 por um convênio com a Prefeitura de São José. O local oferece apoio para as vítimas e seus filhos. As mulheres têm atendimento psicológico, ginecológico, social e demais especialidades. O local acolhe e encaminha para o mercado profissional e dá apoio no que a vítima precisa. Para solicitar uma vaga é preciso ser encaminhado pela Delegacia Especializada de São José. Mais informações pelo telefone: (48) 3278-1978.

>>> Disque 180

Central de Atendimento à Mulher – funciona 24 horas por dia, de segunda a domingo, inclusive feriados. A ligação é gratuita.

>>> Centros de Referência de Atendimento à Mulher (CRAMs)

Espaços de acolhimento e acompanhamento psicológico e social a mulheres em situação de violência, que também fornece orientação jurídica e encaminhamento para serviços médicos ou casas abrigo. Telefones: (48) 3224-6605 (Florianópolis) ou (49) 3644-2273 (Dionísio Cerqueira).

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>>> Centros de Referência da Assistência Social (CRAS)

Unidades públicas que desenvolvem trabalho social com as famílias.

>>> Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher

Órgãos da Justiça ordinária com competência cível e criminal, responsáveis por processar, julgar e executar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.