As reportagens publicadas pela jornalista Daniela Arbex já produziram muitos efeitos. Eis alguns dos mais marcantes: anulação de sentença judicial, prisão de policiais e mudança da causa da morte de um ex-guerrilheiro contra a ditadura. Repórter do jornal Tribuna de Minas há 23 anos, ela nunca deixou a sua cidade natal de Juiz de Fora. Há cinco anos, começou uma carreira paralela de escritora, coma publicação do livro Holocausto Brasileiro: Vida, genocídio e mais de 60 mil mortes no maior hospício do Brasil.
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O best-seller, publicado também em Portugal, já vendeu mais de 300 mil cópias e continua como um sucesso nas livrarias de todo o Brasil. Em 2015, foi a vez de lançar Cova 312, onde a mineira conta como conta a história real de como as Forças Armadas mataram pela tortura um jovem militante político, forjaram seu suicídio e sumiram com seu corpo. Em janeiro deste ano, ela publicou a sua obra mais recente, que conta histórias até então não exploradas da tragédia na boate Kiss, que deixou 242 mortos e uma ferida aberta no coração do Rio Grande do Sul.
Na última segunda-feira, Daniela veio a Florianópolis para ministrar uma aula magna no Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Ao fim, foi aplaudida de pé por um auditório lotado. No mesmo dia, ela conversou com a reportagem do Diário Catarinense para falar um pouco de seus livros e jornalismo. Veja os melhores trechos da conversa.
Santa Maria não é uma cidade grande, tem menos de 300 mil habitantes. É possível, de alguma forma, mensurar o tamanho do trauma causado pela tragédia da boate Kiss em um município como esse?
Eu só consegui entender o tamanho desse trauma quando eu cheguei lá, porque eu percebi a magnitude da devastação. Essa dor que a tragédia provocou é uma dor que continua em movimento. Eu digo que nunca cheguei em Santa Maria e encontrei as famílias da mesma forma que eu deixei. Então, eu só entendi essa devastação quando eu pude estar lá por tanto tempo e conversar não só com as famílias que perderam seu entes queridos, mas com quem participou ou trabalhou no evento. É impressionante o tamanho desse trauma. E isso independe do tamanho da cidade. Acredito que, mesmo que tivesse ocorrido em uma cidade maior, o impacto é tão grande que ninguém sai incólume. É impossível.
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Dor em movimento. Que conceito é esse?
Ela continua agindo. Não é uma dor que provocou aquela ferida e fechou. A ferida continua abrindo. É movimento porque você não consegue pedir superação. Ninguém supera a morte de um filho. Exigir superação é uma total falta de empatia com a dor do outro. Se hoje eu for lá, talvez as pessoas estejam. Mas eu posso voltar daqui um tempo e aquela pessoa, que estava cheia de projetos, cai na cama, em depressão, como foi a caso da Carina (mãe de uma vítima). Eu cheguei para ler para ela (o capítulo do livro) e ela estava deitada, em uma depressão fortíssima. A dor em movimento também tem muito a ver com a falta de justiça. O livro fala disso. A falta de justiça provoca uma devastação semelhante à da perda.
Você falou que se envolveu mais do que gostaria com a história. Por que acha que isso aconteceu?
Quando você permite que o outro habite em você e se deixa habitar pela dor do outro, é possível enxergar o tamanho desse sofrimento. Você consegue sentir um pouco o que o outro está sentindo. Claro que eu nunca vou dimensionar o que é perder um filho, não dá para ter essa ideia, mas eu consigo me colocar no lugar daquelas pessoas. Isso me afetou profundamente, porque é algo insubstituível. Eu encontrei mães que tinham outros filhos, mas que a presença de um remetia à ausência do outro. Era como se elas não enxergassem ou tivessem mais filho nenhum. Eu estive com mães que me disseram que estavam prontas para morrer. Imagine você ouvir isso! Um filho não substitui o outro. É incrível como elas não conseguem mais enxergar os outros filhos. É difícil entender isso.
Você tem o hábito de ler os capítulos dos seus livros com os personagens. Não é algo comum no jornalismo. Por que fazer isso é importante?
É fundamental. Quando eu vou contar a história do outro, se ele não se reconhecer nela, significa que eu não fiz o meu trabalho direito. A pessoa que deu a entrevista tem o direito de conhecer a história dela. Então eu faço isso por uma questão de respeito e de ética, mas também para poder checar informações. A gente lida com um volume tão grande de informação que pode errar. Isso aconteceu em uma leitura de capítulo que eu matei o namorado de uma das vítimas e ele sequer havia ido na Kiss. Imagina se eu publico uma coisa dessa, o estrago que eu iria causar na vida desse menino. A leitura é por tudo isso: pela necessidade de checagem, esse rigor tem que ser exaustivo. Você tem que checar, checar e checar. Eu liguei várias vezes para perguntar a mesma coisa depois que o livro já estava pronto. As pessoas me falavam: “Daniela, você já me perguntou isso”. E eu respondia: “mas eu continuo com dúvida”.
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É uma ânsia por acertar.
É isso! O livro é eterno. Não é igual um jornal, que amanhã pode estar embrulhando peixe. Você não embrulha peixe com um livro, né.
Você já contou muitas histórias em 23 anos de profissão. Existe alguma que considere mais especial?
Não. Eu me sinto muito agradecida e privilegiada, pois já contei tantas histórias especiais que elas fazem eu me sentir especial também. Tem a história do Alexandre, que havia sido acusado de estuprar a própria filha e não havia cometido o crime. Ela levou para a cadeia policiais que hoje estão cumprindo pena. Tem a história do Marco Aurélio, que anulou uma sentença no Tribunal de Justiça de Minas. Independente da repercussão que a história tem, como o caso daquela menina que o pai enfiou uma batata quente na boca para puni-la. Foi uma história local, que não teve repercussão nacional nenhuma, mas achar aquela menina depois e mostrar que o destino dela foi as ruas por omissão da Vara da Infância e da Juventude, para mim foi um trabalho tão grandioso quanto contar o Holocausto Brasileiro.
Por falar em Holocausto Brasileiro, essa era uma história que estava esquecida. Como o assunto surgiu?
Eu tive vontade de contar essa história quando tive acesso às fotos tiradas em 1961 pelo fotógrafo Luiz Alfredo, da extinta Revista Cruzeiro, dentro do hospital. Elas mexeram muito comigo. Primeiro porque eu descobri que a minha geração não sabia nada sobre essa história. Num primeiro momento, achei que só a minha geração não soubesse, mas depois eu fui ver que o país inteiro não sabia. Eu fui inocente (risos). As imagens não me remetiam a um hospital, mas tinha a característica de um campo de concentração. Era um local de destino final para esses indesejados sociais. Foi a partir dessas fotos que eu quis buscar os sobreviventes. E eu queria aqueles fotografados pelo Luiz Alfredo. Eu digo sempre que, se essas fotos não existissem, mesmo com toda a documentação que eu consegui, seria impossível contar essa história. Ninguém iria acreditar.
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Vivemos uma era complicada, com a profusão de mentiras pela internet e pelas redes sociais. Esses tempos fazem do jornalismo algo ainda mais necessário?
O jornalismo é fundamental para a gente preservar a democracia. A sociedade sem um jornalismo livre, de qualidade, investigativo, caminha para rotas ditatoriais, como em países que a gente vê em que não há liberdade de imprensa e se controla as informações. Hoje, quando recebe uma informação, a gente já se questiona: “Será que isso é verdade?”. A gente já trabalha com o “se”. A foto está lá, mas a gente pensa que pode ser montagem. As fake news trouxeram tanta insegurança que só reforça o papel e a importância do jornalismo para a sociedade.
Tornar o jornalismo mais humano é uma saída?
É algo com o qual trabalho sempre. A humanização é o grande caminho do jornalismo. Ao se colocar no lugar do outro, isso provoca mudança. É algo que transforma o olhar e o sentimento das pessoas. Tocar o outro é um grande caminho, reforçar esse papel do jornalismo como instrumento de transformação social.
Você diz que trabalha com investigação e humanização.
São os caminhos que eu encontrei para fazer o jornalismo que eu acredito. A investigação me garante uma apuração de qualidade. A humanização aproxima o leitor – ou telespectador – daquela realidade. Isso é muito poderoso.
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Você pegou época de transformações na profissão. A internet facilitou ou dificultou o trabalho de investigação?
Acho que facilitou muito. Eu tenho um conhecido e a gente discute as investigações com o auxílio do computador. Eu falei para ele: “a gente precisa gastar a sola de sapato”. E ele me retrucou: “o computador te mostra aonde gastar a sola de sapato” (risos). É uma verdade. Eu não posso virar as costas para isso. Usar as ferramentas para acessar informações públicas é fantástico. Mas é preciso aliar essa possibilidade com outras. O computador não vai ao cartório para você, não vai manusear os inquéritos. É por isso que, quando o Supremo Tribunal Militar me liberou (o inquérito que serviu de base para o livro Cova 312), mas disse que iria me enviar uma cópia, eu disse que não e fui lá, por que eu sabia o que era importante para a minha investigação. Não vou deixar que me digam o que é importante. Eu quero ler e descartar o que não interessa.
No seu caso, ser jornalista e escritora são coisas complementares?
São. Eu não gostava muito de ser tratada como jornalista e escritora, porque para mim eu sou jornalista acima de tudo. Mas eu começo a entender que há algumas diferenças mesmo. Ser jornalista para mim é tudo, eu não preciso de mais título nenhum. Eu já me sinto super-honrada de alguém dizer: “ela é jornalista”. Quando falavam em jornalista e escritora, eu ficava inconformada. Mas é diferente mesmo. São papéis distintos. O que não denigre a minha condição de jornalista.
O quão difícil é conciliar essas duas profissões?
É uma loucura. Minha vida virou de cabeça para baixo. Mexeu com tudo, com a minha vida emocional, familiar e até com a minha rotina de jornalista. Antes, eu era 100% do jornal. Agora eu me divido e já não sou mais. Você pensa: “não estou dando tudo que posso”. Mas ao mesmo tempo eu não tenho como dar tudo que posso. É um conflito eterno. São caminhos que a vida toma.
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Você trabalha em um jornal de menor porte. Esse fato mais ajuda ou mais atrapalha?
Os dois. Hoje eu não tenho mais a mínima tristeza quando dizem “imagina essa matéria em um jornal grande, ela explodiria”. Eu tenho uma noção real do meu papel e do que eu tenho que fazer pela minha comunidade. Eu optei em fazer um jornalismo voltado para a minha comunidade. E isso é grandioso. Não tenho mais esse conflito de não estar escrevendo para muitas pessoas. O que eu faço é o papel de jornalista.
Com a internet, as notícias podem se espalhar mais, não?
Depende. Às vezes, a minha coluna de domingo tem 100 compartilhamentos (no Facebook), o que é uma frustração. É pouco para caramba. Você pensa: “Estou escrevendo para quem? Ninguém lê”. Aí você quer matar um! (risos). Mas tem vezes em que é muito lida, como no caso da coluna de saúde mental, que a Eliane Brum compartilhou. Ser lido é muito bom (risos).
Num horizonte de médio prazo, pretende continuar conciliando as carreiras?
Essa é a grande questão. Quando eu souber, te falo (risos). Eu sei que vai chegar o momento – e ele pode estar próximo – que eu não vou mais conseguir conciliar. Mas eu estou adiando, ainda não tenho coragem de encarar. Eu preciso do jornal, e não estou falando financeiramente. Eu amo trabalhar naquele jornal.
Qual o maior reconhecimento que um autor pode receber?
É ouvir coisas como: “o seu livro mudou a minha vida”, “resolvi ser do jornalismo por causa do seu livro”, ” resolvi ser psiquiatra por causa do seu livro”, “vou ser um psicólogo melhor por causa do seu livro”. Tudo isso não tem preço.
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Você diz que sorte não existe. Por quê?
Dizer que foi sorte minimiza o seu esforço. Parece que você estava no lugar certo e na hora certa. Não é bem assim. Claro que há momentos em que as coisas convergem e tudo dá certo. Mas, se você não ralar muito e suar a camisa, nunca estará no lugar certo e na hora certa.