O cirurgião José Carlos Martins cita pesquisas apontando que de 3% a 5% das pessoas trans têm interesse e indicação para redesignação sexual. Esse número se reflete nos procedimentos mais procurados na clínica dele: em primeiro e segundo lugar estão as cirurgias de feminilização facial e corporal. Das 650 cirurgias do processo transexualizador feitas desde nos últimos nove anos, apenas 187 foram genitais.
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Ainda assim, há um abismo se comparado ao número de pacientes de SC que fizeram a readequação genital pelo SUS: apenas cinco nos últimos 15 anos. Uma em 2019, uma em 2022 e três em 2023. Nesse ano, até março, não houve nenhuma. Os dados são do Ministério da Saúde.
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O Hospital de Clínicas do Rio Grande do Sul foi o local onde esses pacientes catarinenses passaram pelas cirurgias após o encaminhamento do governo de SC. A unidade é pioneira em cirurgias de modificação corporal em pessoas trans e começou a fazer os procedimentos em 1998, com o apoio financeiro do governo gaúcho. Um ano antes, partiu de lá a ação civil pública que levou o governo federal a incluir os procedimentos no SUS uma década mais tarde, com regulamentação em 2013. Coordenadora do Programa de Identidade de Gênero (Protig) do RS, a médica Maria Inês Lobato aponta a falta de hospitais habilitados como um dos gargalos no sistema público de saúde, agravado pela pandemia.
— Fazemos duas cirurgias dessas por mês. Uma masculina e outra feminina.
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Quais são os procedimentos transexualizadores previstos pelo SUS no Brasil
Longe de ter o cenário ideal, na visão de Maria Inês, o hospital gaúcho recebe não só pacientes de SC, mas também de outras regiões do Brasil. As visitas rotineiras desses pacientes à unidade, para o acompanhamento de dois anos exigido pelo protocolo, são custeadas pelos estados de origem. Atualmente são 48 homens e 79 mulheres nesse processo, dos quais 33 cumpriram todas as etapas e aguardam pela cirurgia. Na prática, considerando o volume de operações mensais, significa que a espera pode variar de dois a três anos no Hospital de Clínicas.
A coordenadora conta que todo mês chegam mais pacientes e o hospital não tem gerência sobre a fila, pois é uma negociação entre secretarias estaduais de saúde. O cenário ideal está na ampliação no número de hospitais prestando o serviço. No país inteiro são apenas 10, segundo relação informada pelo Ministério da Saúde. Além disso, não há exigência da quantidade mínima de procedimentos mensais.

O coordenador do Núcleo de Estudos em Gênero e Saúde da UFSC, Rodrigo Otávio Moretti-Pires, é enfático: é preciso de mais equipes credenciadas e mais dinheiro disponibilizado pelo governo federal para custear esses procedimentos. Ele frisa também que para conseguir essa habilitação, é necessário uma equipe muito grande, o que torna o processo complexo.
— O fato de ter poucos serviços disponíveis acaba amarrando a possibilidade de um número maior de pessoas atendidas. Além disso, é preciso de financiamentos específicos do governo federal, que consigam dar vazão para esse tipo de atendimento.
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Atualmente, uma comissão se debruça sobre a revisão do processo transexualizador no Brasil para “aprimoramento dos fluxos assistenciais, a ampliação e qualificação da rede de cuidados e a melhoria do processo decisório no âmbito das diferentes experiências relativas à transexualidade e travestilidade desenvolvidas nos serviços de saúde no território brasileiro”. A expectativa é de que as alterações tornem os serviços mais acessíveis e, por consequência, menos demorados, pelo menos para aqueles considerados menos complexos, cita o médico coordenador do Ambulatório Trans de Florianópolis, Marcello Lucena.
Catarinenses vivem agonia da espera na fila do SUS por cirurgias trans: “Posso ser eu?”
No dia a dia no ambulatório, Lucena, homem trans, percebe que praticamente metade dos pacientes tem desejo e indicação para cirurgia de redesignação sexual. Muitos não dão entrada nos papéis desestimulados pelo tempo na fila. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais, essa fila pode se arrastar por 10 anos. De acordo com o governo federal, não há no momento nenhum serviço hospitalar em fase de habilitação em SC.
Esse cenário leva pacientes à Justiça, para exigir a realização do procedimento, custeado pelo governo. A defensora pública Ana Paula Berlatto Fão Fischer diz que a compra de vagas na rede privada não é o melhor caminho, é preciso de uma alternativa definitiva e efetiva para a questão. Mas enquanto isso não ocorre, cita que a instiruição está pronta para prestar apoio jurídico.
O governo de SC nega omissão e cita que os hospitais credenciados no Brasil “não têm disponibilizado vagas para o Estado, em virtude da elevada demanda registrada por seus próprios pacientes”. Em nota, diz ainda que “busca alternativas de pactuação com outros Estados, havendo uma reunião agendada com os técnicos de Goiás”.
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Quem pode recorre à iniciativa privada
soas trans com condições de bancar os custos das cirurgias transexualizadoras. A clínica de Blumenau, por onde já passaram a atriz Glamour Garcia e a modelo Thalita Zampirolli, atende exclusivamente pacientes à procura de redesignação de sexo, harmonização facial e corporal. A unidade encontrou uma demanda reprimida tão alta que, segundo o médico e empresário José Carlos Martins, hoje é a principal do Brasil em número de atendimentos, com muitos pacientes vindos da Europa e Estados Unidos.
Foram essas credenciais que fizeram Mayra Paschuini percorrer aproximadamente 2,3 mil quilômetros para fazer a redesignação sexual em Santa Catarina. Moradora de Rondônia, no Norte do Brasil, ela começou a se estranhar no corpo masculino ao entrar na escola e ser alvo de piadas dos colegas por causa da forma como andava. Com o tempo, o comportamento e as preferências também deixavam evidente que a professora não se identificava com o próprio corpo. De família humilde, ela fez duas faculdades, passou em um concurso público e só depois de conseguir estabilidade financeira começou o processo de transição, aos 27 anos.
Demora para cirurgias transexualizadoras não é a única barreira enfrenta por pacientes no SUS

Mayra acreditava na época que só conseguiria fazer as cirurgias no exterior, até descobrir a clínica em Blumenau. Em Santa Catarina, realizou harmonização facial e prótese mamária particular, desembolsando cerca de R$ 80 mil. Era um passo importante, mas não era tudo. A educadora precisava da redesignação sexual, porém não tinha mais condições de bancar os custos envolvidos no procedimento. Foi quando decidiu acionar o plano de saúde. Depois de quase um ano de tratativas, veio a autorização e mais uma cirurgia em SC.
— O orçamento era R$ 70 mil, com procedimento, hospedagem, passagens aéreas. Eu não teria condições para arcar com esses custos todos — conta.
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Clínica referência no Brasil em cirurgia trans escolhe hospital de Indaial para investir
No fim do ano passado, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, de forma inédita e por unanimidade, que as operadoras de planos de saúde têm a obrigação de custear as cirurgias de transgenitalização e de plástica mamária com implantação de próteses para mulheres trans. Na decisão, a relatora Nancy Andrighi refutou o argumento de uma empresa de plano de saúde de que não iria pagar por ser um procedimento experimental. Ela frisou que por estar no rol do SUS, há evidências científicas que corroboram a eficácia do procedimento.
A ministra também ressaltou que a prótese mamária não é estética.
“Muito antes de melhorar a aparência, visa, no processo transexualizador, a afirmação do próprio gênero, incluída no conceito de saúde integral do ser humano, enquanto medida de prevenção ao adoecimento decorrente do sofrimento causado pela incongruência de gênero, pelo preconceito e pelo estigma social vivido por quem experiencia a inadequação de um corpo masculino à sua identidade feminina”, escreveu a ministra.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça repercutiu rapidamente e fez disparar a procura na clínica de Blumenau. O médico José Carlos Martins conta que precisou abrir um setor específico para dar conta da demanda de pacientes com convênios. A agenda da clínica mostra três cirurgias genitais agendadas por semana até o segundo semestre e a expectativa é de que chegue a cinco semanais até o último trimestre de 2024.
— Os planos de saúde estão entendendo que é melhor fazer o procedimento do que partir para uma ação judicial e ainda correr o risco de ter que pagar danos morais ao paciente pela demora em atender ao pedido. É preciso que as empresas prestadoras de serviços em saúde entendam que não é estética, é integração social, qualidade de vida — destaca.
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Fila de espera para cirurgias trans pelo SUS em SC entra na mira do Ministério Público
Ter plano de saúde afastou Mayra do abismo da fila de espera do SUS.
— Foi um divisor de águas a redesignação sexual, é algo inexplicável. As outras cirurgias foram importantes, mas aquela era a principal. Quando acordei da cirurgia e a anestesia foi passando, eu pensei: pronto, agora sou 100% eu. Uma nova pessoa. Tudo muda — relembra.