Há um desprendimento comovente da parte de quem se posiciona atrás de outro alguém, tomando lugar numa fila que se estende ao horizonte. Se esta formação insana toma corpo diante de um centro cultural, onde quadros, esculturas e afins expõem a inquietação das almas mais resplandecentes da humanidade, ficamos obrigados a desconfiar da arte como instrumento de reflexão, de construção do discernimento. A molécula de DNA surgida na sopa primordial me parece mais inteligente do que este bando metido em filas que não cabem no foco de um míope, tudo para testemunhar, por exemplo, uma obra de Frida Kahlo.

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Depois de quase uma hora sob garoa fina, vinha assim, enfiado em azedumes, quando entrei no Centro Cultural Tomie Ohtake, em São Paulo. Fica lá, até 10 de janeiro próximo, a exposição “Frida Kahlo – Conexões Entre Mulheres Surrealistas no México”. É curioso como estes produtores culturais, talvez pela habilidade em chafurdar editais da lei de incentivo à cultura, redigindo projetos com mais densidade semântica do que de conteúdo, se esmeram nestes títulos.

Bem, mas este não é meu ponto. Não farei aqui uma divagação sobre o surrealismo, fique tranquilo, destorça o nariz. Só queria dizer que, exaurido pela fila, me acomodei logo numa sala escura, para me recompor os nervos. Ali passava a cinebiografia de uma das tais “mulheres surrealistas” do México. Trata-se de Remedios Varos, uma pintora espanhola que transformou o exílio, em lar. Soube algo dela que me comoveu tanto quantos seus quadros.

Remedios despertou para a arte ainda criança, no povoado onde nasceu, em 1908, na Catalunha. Jamais teve a inclinação combatida pela família, que inclusive bancou seus estudos na Real Academia de Bellas Artes San Fernando, em Madrid. Quando estourou a guerra civil espanhola, mudou-se para Paris. Sob a luminescência da cidade, engatou um romance com o poeta Benjamin Péret, também surrealista. Ambos viveram um amor ardente, sustentado pelos desenhos publicitários que Remedios fazia como frila, até que os nazistas marcharam sobre Paris. O casal então se bandeou para o México, em 1941.

Embora o México oferecesse asilo automático a quem fugia das megalomanias bélicas da Europa, uma pátria não basta para garantir sustento. Remedios e Péret foram morar em um barraco modesto, livrando o sustento com um frila aqui e outro ali em publicidade de decoração. Militavam no grupo Logicofobista, que, como indica o nome, contrapunha a lógica rasa vigente.

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Pois os amigos do grupo se impressionavam com a pobreza do barraco, paradoxalmente decorado com gravuras de Picasso e Georges Braque pelas paredes rotas. Quando recomendavam a Remedios vender as obras de modo a obter mais conforto, eram logo rechaçados:

– Não é aceitável se desfazer do presente de um verdadeiro amigo.

Pode ser que Remedios tenha exagerado? Talvez. Mas me senti indenizado pelo tempo na fila ao saber deste gesto num mundo onde tudo, inclusive e sobretudo pessoas, são cada vez mais descartáveis.