
– Gra-ti-dão.
Trata-se de uma cena potencialmente irritante. Tanto porque seu amigo está tentando ser uma pessoa melhor, enquanto você se corrói moralmente neste cotidiano pequeno-burguês que nos venderam como regra, quanto pelo cinismo. Às vezes, quase sempre, acho que cobro mais coerência dos outros do que de mim mesmo. Mas, daqui do térreo da espiritualidade, como um homem afogado em imperfeições, considero falta de grandeza dar publicidade explícita à própria elevação.
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Se o cara se vende como um sujeito desapegado, ora, me parece que está atrás de luminosidade. E buscar a luz para si, nutrindo-se da sombra alheia, sei lá, me parece um jogo de cena de quem a rigor não se desapegou. É o consumo seguido de ostentação de um bem imaterial, cujo valor, material, está posto no mercado. Basta ver a tabela de preços de viagens para lugares purificantes, destinos do zen-capital, de onde o sujeito publica fotos no Instagram mostrando todo o seu desapego oriundo da maquininha do cartão de crédito.
Como disse dias atrás o filósofo Luiz Felipe Pondé, fora desta ribalta da classe média, o sujeito vende a mãe de segunda a sábado para poder desapegar no domingo. Não seria tão ferino, mas vejo uma quimera no elogio do minimalismo autoinfligido.
Porque o verdadeiro desapego, semeado filosoficamente pelas religiões, ou seja, alheio aos ganhos pessoais de qualquer espécie, pressupõe sacrifícios, privações, renúncias, todas severas. Que desapego há em vender um carro que, em taxas e impostos, custa muito mais do que a banda larga para acionar motoristas de aplicativos? Não se trata de abnegação divina, mas esperteza capitalista.
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Em janeiro, vou anunciar o carro para a venda (aceito propostas já, porque sumirei, uns parágrafos aí abaixo direi por que), mas só me senti encorajado ao desapego automotor porque inventaram um jeito de nos livrar do monopólio dos táxis.
Se fosse para andar de transporte público neste país pouco interessado no público, nem convertido ao budismo me jogaria nas mãos do Estado como provedor de mobilidade urbana. E olha que não imagino atividade mais odiosa do que abdicar de olhar a vida fluindo porque estamos protegendo, a gente e os outros, de nossas distrações ao volante.
Todo mundo se apaixona pelas cidades que visita em férias por um simples motivo: as desbravam a pé. Não há sutileza estética possível com uma mão ao volante e um pé no acelerador.
Mas este texto aqui, ao contrário de todos os indícios, não veio para demonizar o carro nem a débil espiritualidade insuflada a título de marketing pessoal nas redes sociais. Vivamos sem pudor a nossa sina de classe média. Até porque não existe algo mais humano do que desejar ser admirado. E não só por amor, um anabolizante natural de nossas qualidades, mas pela leitura fria do mercado, que nos indeniza.
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É por esta consciência, mais carnal do que espiritual, que me despeço deste espaço com a alma leve. Foram 13 anos e seis meses de Santa. Hoje acaba.
Prometo exercer meu desapego sem cinismo, sem choro, com sinceridade, como se espera de um homem disposto a sacrifícios por um bem maior.