Duas colunas atrás, num elogio ao silêncio, frisei que, se há algo que o mundo definitivamente não precisa, são os emissários do óbvio. O sujeito que reclama do BBB, por exemplo. Aparece todo janeiro praguejando contra o programa, como, se de março a dezembro, passasse vendo Fellini na TV Cultura. Trata-se de um teatrinho miserável para parecer mais inteligente e descolado às custas da imputação de culpa aos outros. Deixa a turma ver o BBB e vai manejar o controle remoto em vez da paciência alheia, pôxa.
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Porém, fraco que sou, volta e meia me vejo flertando com obviedades. Jurei suportar a tentação de escrever sobre a mulher tão logo, ao burilar o calendário, constatei que 8 de março cairia um dia depois do meu espaço aqui no Santa. Considero esta data bem questionável, apesar da forte motivação histórica. Também não creio muito produtivo fixar dias para debates que devem ser permanentes.
Mas, mesmo às voltas com todas estas hesitações morais, foi em vão o exercício de resistência ao previsível. Como um bebedor em abstinência diante de um copo suado de chope, sucumbi ao reler o artigo de um padre sobre o feminismo. Se um sujeito em voto de castidade se encorajou a dissecar tema espinhoso, por que eu haveria de silenciar?
O autor do texto Uma Flor Nas Mãos do Criador, vertido 10 anos atrás e que por acaso me ressurgiu diante da retina, é o padre Jonas Abib. É fundador da comunidade Canção Nova, vertente da Renovação Carismática, cujas missas em forma de programa de auditório roubam o sono dos mais ortodoxos. Pelo raciocínio do padre Jonas, a mulher libertou-se do jugo patriarcal para vulgarizar-se como um “produto disponível ao consumo comum”. Com a convicção dos que se julgam emissários de Deus, invade campos do conhecimento alheios à Teologia. Eis um trecho:
– A mulher não quer que ninguém mande nela, mas tem certeza que manda na vida da criança indesejada. Tem direito e poder sobre seu corpo, mas desrespeita o frágil corpo de um ser em formação. Faz e defende sexo livre e desregrado, mas cai em depressão por carência afetiva.
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Ao falar em carência afetiva, estaria o padre Jonas revelando segredos do confessionário? Também estranho o sacerdote católico ter debitado da conta do pai a responsabilidade pelas crianças indesejadas. Sou contra o aborto, mas não vejo autoridade nos homens para longos debates sobre o tema, sobretudo os celibatários. A mim, soa como um morador de Indaial versando sobre o frio. Forjadas na ausência masculina, as mulheres, como guardiãs da vida, saberão decidir sem nossa ajuda.
Padre Jonas é um homem idoso. Fez 80 anos, safou-se no STF de uma acusação de racismo, me informa o Gúgou. Não quero me deter ao texto de uma década atrás, embora, de lá para cá, não me pareça que ele tenha refeito pensamento. Mas cabe uma questão de fundo: se elas são flores nas mãos do Criador, por que a Igreja as condena à submissão eterna? Vamos aproveitar o 8 de março para deixá-las germinar também na hierarquia católica. Quando uma irmã celebrar missa, talvez eu consiga ficar indiferente a análises do feminismo assinadas por um autor de batina.
Até lá, sigo assumindo a responsabilidade pelo fracasso de meus silêncios.