Peço perdão pelo trocadilho hediondo, mas não me surpreende que a nova comoção entre os petistas residuais seja dirigida, com a violência de sempre, ao Leandro Karnal. Trata-se de uma reação que vem disto mesmo, da pulsão de músculos, nervos e tendões, sem qualquer interferência daquilo que se convencionou chamar de alma. Coisas assim, como a carne em estado puro, tendem à putrefação.
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Karnal é destes intelectuais pop, que misturam densa formação acadêmica com oratória de pastor letrado. Encontram mercado em gente canastrona como eu: que tem preguiça de ler filosofia, mas não quer fazer feio na mesa do bar.
Outro intelectual da estirpe, o filósofo Mário Sérgio Cortella conta que, certa tarde, foi parado num shopping por um grupo de adolescentes. Queriam uma selfie com o cara. Se algum estrangeiro desavisado testemunhasse a cena, transbordaria de esperança no Brasil. Não me espanta a popularidade deles. Se não nos resgatam da treva da ignorância, pelo menos nos permitem camuflá-la. São um bálsamo neste mundo de aparências.
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Pois o Karnal galgou simpatia entre a turma da esquerda por ser um crítico feroz do racismo, da misoginia e da homofobia, agenda por demais humana, quase uma obrigação dos sensatos, mas que sectários ideológicos tentam monopolizar. Neste aspecto, o petismo residual se assemelha perigosamente das religiões. Além da renúncia da razão em nome da fé, agora reclama direito autoral sobre a virtude. Seria desfaçatez, não fosse infantil.
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Se você passou o final de semana na Penha, acuado com a impetuosidade das nuvens negras a tal ponto de se desligar das passeatas digitais, situo por que os governistas do governo deposto estão em pé de guerra com o sujeito. Sexta-feira dessas, embriagado de vinho e vaidade, o Karnal postou uma foto ao lado do juiz Sérgio Moro num restaurante de Curitiba. Foi o estopim para um festival de maledicências.
Não vou aporrinhar com discursos sobre a liberdade de pensamento, nem sobre minha crença, sincera, de que é possível dividir a mesa do jantar com quem se discorda, ou se concorda pouco, simplesmente por amor ao contraditório. O que me espanta é a patrulha sobre a alegada neutralidade partidária de Karnal, que, na vermelhidão digital, foi extinta no jantar com o juiz dos vazamentos seletivos. Houve companheiros citando Gramsci para legitimar a tática, rasa, da polarização: “Odeio os indiferentes. Acredito que viver significa tomar partido.” Tradução: “se não está do meu lado, o bom, está do lado deles, o mau”.
Certamente não se deixa de ser cidadão. Há algo de covarde na indiferença. Sigo achando o mundo hostil para negros, gays e mulheres, que o pessoalzinho com camisa da CBF se chateia só com certas corrupções, ignorando bovinamente as patrocinadas por aqueles a quem serviu de massa de manobra, sigo tonto com o discurso do Temer no Dia da Mulher. Não estou indiferente, não sou neutro. Karnal também não, pelo que leio. Só me permito não herdar os ressentimentos do PT.
Quero ter o direito de cultivar minhas utopias sem a bênção dos partidos políticos, que falharam como instrumento de transformação social. E, sobretudo, sem a admoestação dos partidários do partido que vendeu a utopia. Será que é pedir demais?
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