— Pai, o que aquelas pessoas fazem deitadas no chão?

Criado em Blumenau, pedaço de floresta onde o Brasil deu certo antes, meu filho precisou viver nove anos até cruzar pela primeira vez com mendigos. Foi numa manhã mormacenta no centro velho de São Paulo, onde os tentáculos da Cracolândia nos esbofeteiam com insistente regularidade. Não esqueço o semblante confuso do Inácio. Havia na pergunta um desejo quase incontido de que a verdade que lhe saltava aos olhos não fosse sincera. Que os caras só estivessem ali deitados no chão para dar uma descansadinha antes de voltar para casa. Dei a resposta crua, com a franqueza exigida pela situação.

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Ainda me questiono se deveria ter feito um floreio verbal antes de informar secamente a meu filho que, sim, há seres humanos que não têm para onde ir. Mas aquela conversa de uns anos atrás fez germinar no Inácio uma preocupação com o bem-estar de quem tem menos. Percebi isto na última eleição.

Um pouco pela preguiça de enfrentar a burocracia para transferir o título, outro tanto por desencanto, não voto desde 1998. Não sou cúmplice, portanto, de nada de bom e de ruim que este país nos fez passar nos últimos 19 anos. Trata-se de uma covardia confortável, admito. Mas meu afastamento destas lides democráticas desaponta o Inácio, que expressou a frustração ao me ver sair para justificar o voto.

— Pôxa, eu queria que você votasse no fulano (omito o nome para não partidarizar um texto sobre a essência da política, ok?), que foi numa favela e prometeu ajudar os pobres.

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Em que pese a ingenuidade infantil, visto que político brasileiro ajuda mesmo é banco e montadora de carro, enxerguei na aspiração do Inácio uma razão para aquilo que nos leva às urnas de dois em dois anos. Não faz sentido movimentar tanta gente se não for para melhorar a vida de quem está na pior.

Não defendo aqui o assistencialismo rasteiro, que perpetua a inércia dos miseráveis. Só acho que o Estado, guloso devorador da renda alheia, precisa agir justamente nos efeitos colaterais da competição selvagem em que estamos metidos. Aliás, neste aspecto, o papel do poder público se assemelha a uma paternidade justa. É preciso amparar os filhos mais débeis e encorajar os mais fortes. Desconfio da lucidez para quem cria crianças da mesma forma e depois se surpreende com o comportamento distinto dos adultos. O fato de virmos do mesmo útero não padroniza as necessidades, sobretudo as emocionais.

Converso muito com um velho amigo sobre a validade deste papo de direita e esquerda quando todos se unificam na vilania, na vaidade e na obsessão pelo poder. Sinto que meus sonhos foram vendidos, como previu o Cazuza. Criamos uma situação onde ter um lado nos torna cúmplices de coisas indizíveis. Mas este meu interlocutor, romântico, crê numa política altruísta, feita para abrandar os abismos. É uma condição moral da qual ele, comunista envergonhado, não abre mão.

Oxalá o Inácio conserve este sentimento bonito quando tiver um título de eleitor em mãos.

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