
A gente se socorre na ideia do temporário, mas a alma interpreta como eterno qualquer temporário sem data certa para acabar. A solidão tem este poder de realçar nosso egoísmo: a gente percebe que o outro está bem, excitado para a vida, mas ainda assim se advoga o direito de sofrer com estardalhaço. A potência do amor é proporcional à tolice que ele nos rebaixa.
Continua depois da publicidade
A rotina é um veneno, reconheço. Mas há uma beleza sublime neste fardo. Passamos café todo dia, mas só se tem a exata dimensão da importância disto quando se reduz a quantidade de pó no filtro. Ou quando, ao montar a mesa, pega-se talheres a menos. Gestos quase mecânicos que, a rigor, simbolizam a presença essencial do outro. Eu odeio esta capacidade humana de reduzir a relevância das coisas pela repetição. Repetição é oportunidade. Um preço barato demais pelo privilégio de ter quem se ama por perto.
Bem, depois deste cochilo enternecido ao ritmo da pulsação dela, descerro as pálpebras e preciso lidar com a ideia de que tudo havia sido um sonho. A sala enorme, que nos encantou quando escolhemos o apartamento, estava impregnada do mesmo ar rarefeito. Exausto por errar a madrugada inteira, adormeço de novo, a despeito da dor naquele ossinho que funde as costelas e se expande como o universo me futucando sem parar.
Uns minutos depois, talvez, ouço passos no corredor. Vinha ela com os cabelos úmidos, acabara de sair do banho, besuntada dos cremes que dividem a bancada da pia com meu balm pós-barba. Volto a abraçá-la, aspiro fundo o pescoço, cujos aromas naturais haviam sido sabotados pelos cosméticos. Esta, aliás, é outra coisa bacana da rotina normalmente subestimada: o olfato como indicador do outro.
Aquecido pelo segundo abraço, com as costas arqueadas pelo cochilo no sofá, rumo ao quarto. Mas o arsenal de cremes não estava na bancada da pia. Meu balm estava ali, com a minha escova de dentes azul, cor que somos treinados para atribuir aos meninos. Nos servíamos desta bobagem como artifício para evitar confusão.
Continua depois da publicidade
O universo onírico tem um senso de humor leviano. Me pregou duas peças numa das mais longas madrugadas da minha vida.
Pelo menos já era dia lá fora. A solidão no escuro é mais cruel.