[19:28, 6/10/2016] Fabrício Cardoso: Mano, tudo bem?
[19:29, 6/10/2016] Fabrício Cardoso: Se tu for lá em casa, por favor, tira uma foto minha de quando criança, pode ser com o celular mesmo, e me manda.
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Tão logo pressionei o botão de enviar, a rigor uma súplica para revirar intimidades familiares que só se faz a quem amamos, invadiu meu uatizápi uma avalanche de rostinhos amarelos redondos, ora sorridentes a ponto de ir às lágrimas, ora pensativos. Foi quando percebi a besteira. Em vez de endereçar ao meu irmão, a mensagem havia caído no grupo da firma.
[19:29, 6/10/2016] Fabrício Cardoso: Gente, desculpa. Era para meu irmão. Ainda bem que era assunto bem comportado, hein?
Pipocaram novos rostinhos amarelos sorridentes e frases de consolo, do tipo “quem nunca? Rs”.
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[19:35, 6/10/2016] Fabrício Cardoso: Poderia estar pedindo fotos de outra natureza, seria um desastre…
Desconversei, mas, com a melanina cada vez mais escassa nos fios que brotam de mim, com a cintura assumindo inexoravelmente os contornos da Linha do Equador, sinto que fui pouco convincente sobre os riscos de ter interceptado um pedido de “nudes” ou qualquer outra depravação passível de circular a bordo da tecnologia.
Como narrado acima, sobrevivi ao episódio sem maiores arranhões à reputação, mas não sem me meter numa divagação de teor catastrófico. Tenho desembolsado um preço emocional altíssimo desde às 19h28 do dia 6 de outubro, hora exata da minha imperícia ao uatizápi.
Não estou triste por me flagrar sem a posse de nem sequer um registro fotográfico da minha infância, porque tive, como quase todos da minha geração, uma mãe com pendores para a biblioteconomia. Deduzo isto pela velocidade que ela localiza coisas antigas, desde fotos à fantasia de coelho de pelúcia (sim, fizeram isto comigo à revelia do Conselho Tutelar…) usada no jardim de infância. Faz tudo de forma analógica, tanto que preciso de meu irmão como intermediário de seus serviços.
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Creio que usufruí desta habilidade materna por longos e arrastados anos, à beira do abuso que só mães toleram. Meses atrás, localizei, no mesmo uatizápi, companheiros do serviço militar obrigatório. Quis saber o paradeiro da túnica verde oliva da formatura no distante 1992. Em questão de minutos, minha mãe apresentou a peça que, hoje, nem em apneia severa consigo abotoar. Foi graças a Dona Gicelda que meu passado teve futuro.
E aí mora minha inquietação mais renitente. Praticamente aboli a ampliação de fotos dos meus meninos. Há muito, bebendo de conveniências arriscadas, tenho delegado a guarda dos registros de infância deles ao Zuckerberg e outros construtores de impérios digitais. E impérios, sabemos desde os incas e os astecas, fenecem, às vezes sem razão aparente. Quando ruir o Facebúqui e seus assemelhados, milhões de passados ruirão junto.
Muitos, de espírito geek, dirão que há nuvens que não se dissipam, que há relicários tecnológicos à prova de colapsos. Ok, mas duvido que tenham a tenacidade, o método e o carinho de uma Dona Gicelda.
Talvez nossas crianças, diferente de mim, não tenham a sorte de ter alguém de carne e osso para suplicar por uma foto.
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