Graças ao exercício da autocrítica que a maturidade se encarrega de fazer mais suave, me vejo como um projeto bem acabado de ser humano. Digo projeto porque me falta disciplina e tenacidade para levar adiante ideias já sedimentadas no campo das certezas, e a inércia vence a ação. Sigo então sendo um homem aquém do que poderia ser.

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Por exemplo: não me resta dúvida da superioridade moral dos vegetarianos. Não só pelo respeito à vida dos animais, exercido com um ardor político capaz de levar inclusive ao desrespeito com o semelhante, mas porque a produção de carne é um jeito pouco inteligente de se produzir alimento num planeta exaurido por tanta gente. Porém, apesar desta consciência global, sucumbo sob o perfume da mais ordinária das linguiças toscanas à brasa.

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Às vezes, com os lábios ainda besuntados pela gordura do pernil, me indago se não sou preguiçoso demais para sustentar o peso das ideias mais elevadas. Porque meu fracasso não se configura só à mesa, pois este é um território delicado para glutões como eu, poderia ser uma fraqueza pontual. Infelizmente, minha incoerência se espalha como pó em rua de macadame por todos os cantos da existência.

Sou, desde menino, um amante da bicicleta. Até hoje sinto nas bochechas o ar gelado do inverno em que aprendi a pedalar, façanha enobrecida por ter sido conquistada numa rua de paralelepípedo, debaixo de furiosa trepidação. Nutro gratidão pelo esporte porque, sobre uma bicicleta, posso enfim me considerar um homem equilibrado.

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Se eu tivesse paciência para cultivar uma barba e gosto por camisas xadrez e chapéus, posaria de hipster engajado com razoável chance de ser convincente. Porém, mais uma vez, maldita preguiça!, sucumbo diante das facilidades oferecidas por um carro em dias de chuva.

Pelo menos amenizei este desvio de caráter semanas atrás, ao introduzir meu caçula de 11 anos nas artes da bicicleta. Não foi fácil, como nunca é. O domínio desta habilidade lhe custou joelhos lanhados. Mas hoje posso dizer que o cara sabe pedalar. Durante o processo de aprendizado, porém, não pude deixar de reparar numa característica essencialmente humana, que se manifesta de forma cristalina nas crianças.

Enquanto o Olavo vacilava no pedal, denunciado pelo equilíbrio ainda débil dos ciclistas novatos, outros meninos se aproximavam exultantes. Não para oferecer ajuda, mas para exibir a perícia com a bicicleta, andando em círculos e elipses, por vezes sem a mão no guidão. Foi aí que me pus a refletir sobre a miséria da nossa condição. Para nos sentirmos melhor, precisamos que outro seja pior. Depois de adultos, seguimos reproduzindo esta maldade dissimuladamente.

E assim, vibrando com o fracasso alheio, vamos atalhando. Porque, como confessei há pouco, protegido pela ironia, é muito difícil melhorar nós mesmos.

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