Sujeitos no declínio da vida, talvez como compensação pelas limitações impostas pelos anos, ficam mais despudorados para reexaminar as bobagens que fizeram. Porque, salvo Lula e a Madre Tereza de Calcutá, todo o resto da humanidade vai pontuando a existência com uma besteira ali, outra aqui. Não é um exercício fácil, porque entrar em contato com aquilo que fomos ontem, em alguma medida, agride quem queremos ser hoje.

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Posso dizer que, 12 verões atrás, quando ainda não me encontrava no declínio da vida, fui acometido precocemente desta coragem. Num texto publicado no falecido Caderno de Verão do Santa devassei meu passado de Mala do Calçadão de Balneário. Não me orgulho desta trajetória, mas, no final dos anos 90, me vali do amparo financeiro do meu pai para gastar dois meses de salário com o som do carro. Aos sábados, enchia o que restara do porta-malas com fardos de cerveja barata, se não me falha a memória uma certa Belco, vendida em promoções imperdíveis na Coperhering, e rumava ao Litoral.

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Chegando lá, farejava com obstinação uma vaga na Atlântica. Às vezes levava quase uma hora, mas, quando enfim um espaço se apresentava generoso, estacionava, abria as portas e contaminava aquele esplendoroso cenário com uma trilha sonora hedionda. Quase sempre era Cheiro de Amor, mas, quando eu estava intelectualmente mais pretensioso, tocava Cidade Negra. Afinal, ainda era moleque para entender o Erê.

Não saberia dizer, até porque tal consciência matemática me aniquilaria a alma, quantos entardeceres destruí nesta exacerbação sonora. Quantos momentos de contemplação, quantas conversas boas, quantos amores incomodei fazendo ecoar aqueles versos cheios de vogal, enquanto bebericava minha Belco? Como é conveniente esta ignorância.

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Foi um instante de iluminação quando enxerguei toda a tolice contida neste tipo de lazer barulhento, embora a percepção tenha sido construída aos poucos. Lembro de uma entrevista do sempre verborrágico Ed Motta, que disse não ter compaixão alguma das duplas sertanejas que viam suas obras sugadas pela pirataria, porque “jamais vi Egberto Gismonti à venda no camelô.” Para Ed, só música de má qualidade alimentava aquele mercado imoral.

Apliquei a mesma lógica e conclui que o volume com que se ouve uma determinada música é inversamente proporcional ao seu valor artístico. Porque ninguém chega no Calçadão de Balneário e põe Vitor Ramil no máximo. Há canções que são feitas para se escutar mais na alma do que propriamente pelo tímpano. Uma quietude fala mais que amplificadores de muitos watts.

Busquei todas estas lembranças ao ler que, numa ocorrência de perturbação de sossego, a PM disparou tiros num condomínio lá da Itoupavazinha. Sobretudo na periferia, precisamos criar opções de lazer que vão além de um domingo enchendo a cara sob a trilha porcamente composta. Não é só em Blumenau, trata-se de um fenômeno presente em nossas cidades, este vazio cultural nos bairros mais afastados – apesar de o barulho não ser prerrogativa dos pobres, friso, antes que alguém venha me atiçar culpas burguesas.

É um processo trabalhoso, eu sei, mas, quando aumentamos a fruição estética da vida, além de acariciar o espírito, necessitamos de menos polícia. Enfim, precisamos envelhecer um pouquinho.

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